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clóvis rossi

 

28/03/2011 - 15h38

Um mal estar juvenil e planetário

Começo remetendo o leitor à coluna que a Folha publicou sábado (reproduzida na íntegra ao pé) em que havia dois temas conectados: primeiro, o fato de que não está limitado ao Oriente Médio o mal-estar juvenil, que é um dos principais combustíveis, talvez o principal, das rebeliões no mundo árabe.

Espalha-se pela Europa, do que dá testemunho o caso da "geração à rasca" (em apuros), movimento em Portugal que levou 300 mil pessoas às ruas no último dia 12.

O segundo ponto da coluna é a desconexão entre partidos e sociedade, embora os primeiros devessem ser o vínculo entre ela e o Estado.

Depois da publicação da coluna no sábado, alguns dados juntaram-se para reforçar tais sensações, a saber:

1 - O protesto do sábado em Londres, a maior manifestação de rua desde os movimentos contra a guerra no Iraque, em 2003. Revela um mal estar que não é apenas dos jovens, mas de amplos setores sociais que se sentem prejudicados pelos cortes orçamentários determinados pelo governo conservador para enfrentar o déficit público.

Detalhe: o Reino Unido só incorreu em déficits porque o governo, no caso o trabalhista, foi obrigado a despejar toneladas de dinheiro no setor privado, para evitar um colapso econômico. Parte desse dinheiro foi para bancos, que, no entanto, não pagam a sua cota pelo estrago causado.

Aí vem o enlace com o debilitamento dos partidos: se os trabalhistas perderam a eleição porque foram considerados culpados pela crise, os conservadores (e os liberais a eles coligados) enfrentam agora os protestos de massa contra a fórmula adotada para sair da crise.

2 - Saiu na Espanha uma pesquisa que mostra que 78% dos espanhóis qualificam de forma negativa a atual situação política do país. É a porcentagem mais elevada em duas décadas.
Mas o dado mais revelador nem é esse, conforme a análise do jornal "El País": "Esse nível sem precedentes de descontentamento político se deve a uma dupla perda de confiança, no governo mas também na oposição. É uma situação inédita: nunca antes em nossa democracia, governo e oposição haviam empatado em relação ao nível de desapego suscitado no conjunto da sociedade".

Engato aí o desencanto juvenl: na Espanha, o desemprego entre os jovens duplica a já formidável taxa geral de desemprego (perto de 20%, verdadeira aberração) e é a sequela da crise que mais preocupa o público.

Não é à toa, portanto, que um "rapper" palestino radicado na Espanha, Saad El Roach, diga, também a "El País", que "não há diferença entre os jovens árabes e os jovens espanhóis. Ambos têm o mesmo medo do futuro".

3 - Pesquisa feita para as TVs francesas e publicada domingo mostra que uma outsider (a racista Marine Le Pen, presumível candidata presidencial da Frente Nacional) eliminaria do segundo turno do pleito de 2012 ninguém menos que o presidente Nicolas Sarkozy.

Marine só não estaria no segundo turno caso a candidata socialista seja Ségolène Royal, que Sarkozy derrotou em 2008. Se o PS preferir Dominique Strauss-Khan, hoje diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, François Hollande, ex-secretário-geral e ex-marido de Ségolène, ou Martine Aubry, atual secretária-geral, o segundo turno seria entre os socialistas e a Frente Nacional, xenófoba.

Que haja perspectivas de Sarkozy perder em 2012, é natural e faz parte do rodízio no poder entre os partidos tradicionais. Que um partido ultra desbanque o presidente, parece sinal de uma anomalia.

Aliás, na Alemanha, no domingo, um partido não tão tradicional, os Verdes, ganhou pela primeira vez na história o direito de governar um "land" (Estado), o de Baden-Würtemberg, em aliança com a tradicional social-democracia. Desbancaram a democracia-cristã da primeira-ministra Angela Merkel, que mandava no Estado desde 1953.

Pode ser que tudo não passe de um momento fugaz, mas não creio que seja incorreto generalizar para a maior parte do planeta uma avaliação relativa ao Peru feita por Fernando Tuesta Soldevilla, professor de Ciência Política na Pontificia Universidade Católica e na Universidade de San Marcos, para o "site" Infolatam:

"Há duas décadas, a distância entre os cidadãos (eleitores) e os canais organizados da política para o acesso ao poder (os partidos) se debilitaram de tal maneira que estes [os partidos] se esvaziaram daqueles [os eleitores]".

Vale, creio, também para o Brasil, em que a política se sustenta não pelo que fazem ou dizem os partidos mas por personalidades que falam diretamente ao eleitorado.

A seguir, a coluna publicada sábado na Folha:

Lisa Anderson, presidente da Universidade Americana no Cairo, aponta, em texto para o instituto Carnegie para a Paz Mundial, três características comuns às rebeliões no mundo árabe: espontaneidade, uma juventude economicamente frustrada e uma gerontocracia no poder.

Quando duas dessas características, as duas primeiras, estão também presentes em Portugal, no movimento autobatizado de "geração à rasca", começa a dar-se um cenário que deveria provocar investigações profundas a respeito do que está havendo no mundo ou em grande parte dele ao menos.

"Geração à rasca" significa precisamente uma juventude economicamente frustrada. Conseguiu convocar, em movimento espontâneo, via Facebook e twitter, cerca de 300 mil pessoas para uma manifestação no centro de Lisboa, faz duas semanas.

A agenda é semelhante à dos jovens árabes com uma diferença --fundamental, de resto: não precisam pedir liberdade porque Portugal desfruta de toda a liberdade que a democracia é capaz de oferecer.

Aí é que está o ponto: que os jovens árabes se levantem contra a tirania é fácil de entender. Movimentos libertários, bem ou mal sucedidos, fazem parte da história da humanidade. Que jovens portugueses também o façam, à margem dos canais tradicionais, é menos frequente e parece indicar algo mais profundo.

A espontaneidade desses movimentos mais a sua agenda central sugerem o entupimento dos canais tradicionais de mediação entre a sociedade e o Estado (partidos políticos, sindicatos, mesmo as ONGs, de surgimento mais recente).

Não é uma situação inédita. O movimento batizado de antiglobalização já é relativamente antigo e refletia a carência da política. A novidade agora é que também esse movimento está sendo marginalizado.

Oded Grajew, o idealizador do Fórum Social Mundial, uma espécie de coalizão das ONGs e movimentos sociais ditos antiglobalização, tem toda a razão em se queixar de que os jornalistas não damos a devida atenção ao FSM e seus desdobramentos.

Mas acho que ele se engana ao puxar para o guarda-chuva de sua criatura a origem das revoluções árabes. Vale idêntica observação para o caso de Portugal de que Oded nem tratou no seu artigo de ontem para a Folha, certamente porque o noticiário a respeito, no Brasil, foi zero.

O FSM tem um viés anti-capitalista. Os jovens rebeldes pedem menos. Pedem sua parte no bolo capitalista. Grupos anarquistas aproveitam eventos anti-globalização para quebrar vidros dos McDonald's da vida. Os jovens árabes não queimaram uma só bandeira dos Estados Unidos, pela primeira vez na história de movimentos de massa na região.

O que há, nas ruas do Oriente Médio e de Lisboa, é uma formidável mescla de simpatias. Pelo menos em Portugal, "foi o grito de uma geração apolítica, que ignora os dirigentes do país, que pouco participa nas grandes pugnas eleitorais, que na maior parte dos casos nunca tinha postos os pés numa manifestação e que, em matéria de grandes ajuntamentos, frequenta quase exclusivamente os dos festivais de música de verão", escreve Nicolau Santos, diretor-adjunto do semanário "Expresso", a melhor publicação portuguesa.

Posso estar completamente equivocado, mas tenho a sensação de que Nicolau está descrevendo uma fatia substancial da juventude não só de Portugal, mas de toda a Europa e do Oriente Médio e, por quê não?, também do Brasil.

Convém, pois, prestar mais atenção do que o fizemos em relação ao Fórum Social Mundial.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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