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clóvis rossi

 

07/04/2011 - 13h34

Memórias de uma festa que desandou

Confesso: sinto-me pessoalmente ofendido agora que Portugal, depois de muito hesitar, jogou a toalha e admitiu que precisa de socorro financeiro da União Europeia, que vem atado ao do Fundo Monetário Internacional.

Sou apaixonado por Portugal desde que descobri o país já faz uma vida: 37 anos exatos, a se completarem este mês, aniversário do 25 de abril, a data da chamada Revolução dos Cravos. O nome vem do fato de que o tal de povo colocava cravos na boca das armas da tropa, em fotos que correram o mundo, após a derrubada da ditadura salazarista (Salazar já havia morrido; o ditador de turno era Marcelo Caetano).

Foi o primeiro dos muitos porres de democracia que a profissão me fez tomar, graças a Deus. Funcionava como uma espécie de vingança contra dois momentos ruins: o do Brasil, que estava saindo do mais duro período repressivo, o do general Garrastazu Médici, para entrar no governo Ernesto Geisel, ainda antes da abertura dita 'lenta, gradual e segura'.

O segundo momento fora, seis meses antes, a cobertura do golpe no Chile. Apesar de só ter conseguido entrar no país dias depois do 11 de setembro, a data do golpe, ainda assim deu para ver o sangue nas águas do rio Mapocho, que banha Santiago, deu para ver aquela fogueira de livros, outra foto que correu mundo, deu para ver o desespero das famílias que se amontoavam às portas do Estádio Nacional, transformado em infame prisão.

Nunca me saíram da memória as noites no quarto do hotel Carrera, hoje Ministério de Relações Exteriores, atrás do bombardeado Palácio de la Moneda, preso pelo toque de recolher que começava, nos primeiros dias, às seis da tarde. Olhava para a praça da Constituição - ah nome irônico naquela altura - e via os semáforos passando do vermelho para o amarelo, para o verde, sem que ninguém, nem gente nem carro, por ali passasse.

Ao longe, o ratatá das armas praticando a matança indiscriminada. Há até uma canção do grupo folclórico Inti Illimani cujo refrão diz 'están matando chilenos/ay que haremos/ay que haremos?'

Portugal, portanto, era um bálsamo, uma festa permanente. Os jovens oficiais iam às boates a bordo de suas 'chaimites', como chamam os carros de combate, os exilados retornavam para reencontros emocionantes, o humor era forte. Lembro-me da pixação que os anarquistas fizeram nos muros do hospício de Lisboa, quando o primeiro-ministro era o coronel Vasco Gonçalves, tido por comunista e meio louco.

Com aquele 'a' dentro de um círculo que hoje é símbolo de e-mail, escreveram: 'Vasco, volte para casa'.
A limpeza pública caiou o muro, mas, no dia seguinte, o pessoal atacou de novo: 'Vasco, ao menos venha para consultas'. Nova repintura, e um terceiro pedido: 'Vasco, pelo amor de Deus, tome os remédios'.

A crise atual parece ter sepultado todos os extraordinários avanços havidos nesses 37 anos.
Nicolau Santos, diretor-adjunto do semanário 'Expresso', com quem cruzei em um simpósio na Alemanha, no mês passado, me contou que tem a maior dificuldade para explicar aos filhos como era a Portugal pré-revolução para que eles possam comparar com a atualidade.

Contou-me também que já são 140 mil os portugueses que fugiram para Angola, fazendo o percurso inverso da geração anterior, que escapava do país africano às vésperas da independência.

O que mais dói nessa história de pedir socorro é que não resolve o problema. No já citado 'Expresso', na semana passada, Daniel Oliveira descreve os planos de austeridade que precederam o anúncio do pedido de auxílio, da seguinte e precisa maneira:

'Com ou sem FMI, as medidas de austeridade aceitas de um ano para cá pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata resolvem o problema dos credores matando o devedor'.

Bingo. Basta ver o quanto subiram, no começo desta quinta-feira, após o anúncio do pedido de socorro, os papéis dos bancos portugueses na Bolsa de Valores para entender a análise do 'Expresso'.

Tem mais: Grécia e Irlanda, os países que jogaram a toalha antes de Portugal, continuam pagando juros impossíveis e retrocedendo econômica e socialmente.
Saudades da anarquia dos cravos na boca das armas. Hoje, o sistema financeiro não dispara balas nem cravos, mas mata silenciosamente.

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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