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clóvis rossi

 

19/05/2011 - 18h35

Sai a força, entra o jeito

O discurso do presidente Barack Obama sobre o Grande Oriente Médio (porque se dirige também a países que não são estritamente da região) é uma promessa de que a força será submetida pelo jeito --ou, para abandonar o ditado popular, pelos valores de que tanto se orgulham os Estados Unidos, por mais que muitas vezes os violem.

O abandono da força é duplo, a direta, empregada pelos EUA no Iraque e no Afeganistão, e a indireta, na forma de respaldo à maioria das ditaduras que infelicitam a região.

Ou, nas palavras do sempre hábil orador que é Obama, "depois de décadas de aceitar o mundo como ele é nessa região, temos uma chance de perseguir o mundo como deveria ser".

Bela frase. Vejamos agora como o mundo deveria ser, na versão Obama:

1 - "Os Estados Unidos se opõem ao uso da violência e da repressão contra o povo da região".

Pena que só agora seu presidente descubra essa oposição, depois de décadas de apoio a ditadores como Hosni Mubarak, no Egito, ou à dinastia governante na Arábia Saudita.

Obama poderia, pelo menos, ter pedido desculpas.

2 - "Nós apoiamos um conjunto de direitos universais. Esses direitos incluem o livre discurso; a liberdade de reuniões pacíficas; a liberdade de religião, a igualdade para homens e mulheres sob a égide da lei; e o direito de escolher os próprios líderes, viva você em Bagdá ou Damasco, Sana [capital do Iêmen] ou Teerã".

Que bom. São direitos dos quais estiveram excluídos quase todos os árabes/muçulmanos e que só agora começam ainda timidamente a serem reconquistados sem que os Estados Unidos tenham sido os agentes da reconquista, ao contrário do que foram na imposição de ditaduras.

Obama reconheceu que "não foi a América que pôs o povo nas rua de Tunis e do Cairo. Foi o povo, ele próprio, que lançou tais movimentos e deve determinar o seu desenlace".

Para que o desenlace seja conforme o conjunto de princípios desenhado pelo presidente, Obama anunciou ainda o que alguns jornais já estão chamando de "Plano Marshall para o Oriente Médio". Exagero: por enquanto são apenas US$ 2 bilhões, de todo modo um esforço para que as rebeliões democratizadores não colidam com situações econômicas insuportáveis.

Ou, como diz Obama, "nós apoiamos a reforma política e econômica no Oriente Médio e no Norte da África que possa satisfazer as aspirações legítimas das pessoas comuns em toda a região".

O problema é que pode haver diferenças insanáveis entre o que Obama acha que são "aspirações legítimas" e as aspirações propriamente ditas do mundo árabe. O próprio presidente reconhece que "nem todos os países seguirão nossa particular forma de democracia representativa, e que haverá momentos em que nossos interesses de curto prazo não se alinharão perfeitamente com nossa visão de longo prazo da região". Mais: reconheceu que "há uma espiral de divisão entre os Estados Unidos e o mundo árabe" que precisa ser revertida.

Tem razão: recente pesquisa do Instituto Pew mostrou que apenas 20% dos árabes têm uma visão positiva dos Estados Unidos.

É sintomático a respeito que Dalia Mogahed, diretora do Centro Gallup de Pesquisas (Abu Dhabi), diga:

"Se as memoráveis transformações que estão tendo lugar no Oriente Médio nos ensinam algo é que devemos desaprender tudo o que pensávamos que sabíamos sobre a região. Destacável nesta lista é a noção paternalista de que os árabes só terão democracia quando nós os considerarmos suficientemente seculares, suficientemente pró-Israel e suficientemente a favor das políticas dos Estados Unidos na região".

Pelo menos no capítulo Israel/palestinos, o discurso de Obama é suficientemente pró-Israel para não introduzir nenhuma novidade no eternamente estancado processo de paz.

Tão pró-Israel que o colunista Aluf Benn, do jornal "Haaretz" escreveu: "O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu pode se sentir satisfeito enquanto voa para Washington nesta noite [de quinta-feira]: o presidente Barack Obama conferiu a Netanyahu uma grande vitória diplomática". Por que? Responde Benn: "Em troca de seu chamado para o estabelecimento de um Estado palestino baseado nas fronteiras de 1967, com troca de terras acordadas [entre palestinos e Israel], sem definir as dimensões dessas terras, Obama aceitou as demandas de Netanyahu de estritos arranjos de segurança e uma gradual e contínua retirada da Margem Ocidental" [um dos dois pedaços do território palestino, sendo o outro a Faixa de Gaza].

O colunista israelense poderia ter acrescentado que, para maior alegria de Netanyahu, Obama praticamente vetou a declaração de um Estado palestino independente, sem consulta a Israel, proposta que as lideranças palestinas pretendiam levar à Assembleia-Geral da ONU em setembro.

"Ações simbólicas para isolar Israel nas Nações Unidas em setembro não criarão um Estado independente", fulminou.

Que essa visão contraria os palestinos é fácil de deduzir ao ler a mídia árabe, especificamente Issandr El Amrani, colunista de "Akl Masri Al Youm" ("O Egípcio Hoje"): "Na ausência de qualquer processo de paz viável, o melhor caminho seria ao menos respeitar a legislação internacional e a legitimidade do princípio de autodeterminação, o que significaria apoiar os esforços da Autoridade Palestina nas Nações Unidas para obter o reconhecimento de seu direito à soberania" --exatamente o contrário do que fez o presidente norte-americano.

É verdade que Obama também disse que "o sonho de um Estado judeu e democrático não pode ser realizado com ocupação permanente [dos territórios palestinos]".

O problema é que Obama já havia exigido antes que a ocupação cessasse, sem que Netanyahu desse um único e mísero passo nessa direção.

O discurso, portanto, nada traz de novo nesse espinhoso capítulo, apesar de o próprio presidente admitir que "a comunidade internacional está cansada de um interminável processo que nunca produz um desenlace".

clóvis rossi

Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.

 

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