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clóvis rossi
O mercado pede mais sangue
Terminou o primeiro e mais trepidante capítulo da crise da dívida norte-americana, com a aprovação esta terça-feira, pelo Senado, da elevação do teto da dívida. Sem isso, o 2 de agosto seria o apocalipse devido ao calote inédito da maior potência econômica do planeta.
Reina, então, a calma nos mercados? Nem pensar. A crise volta a atravessar o oceano e a ameaçar outra vez a Europa. Seria até monótono, não fossem os riscos tremendos que traz para toda a economia mundial essa infinita sede de sangue do mercado.
Que é sede de sangue, é fácil de demonstrar: os alvos preferenciais da especulação voltaram a ser Espanha e Itália. Deixo a Itália de lado por hoje e me concentro na Espanha.
Acompanhe a evolução:
1 - O presidente do governo, José Luis Rodríguez Zapatero, que adotava uma política pró-mercado mas com moderado verniz social, promoveu uma brutal guinada no ano passado, sob pressão dos mercados.
Adotou um tremendo pacote de ajuste fiscal, que reduzirá o gasto do governo até 2014 no equivalente a 5,3% do PIB. Se fosse no Brasil, equivaleria a um corte de R$ 147 bilhões.
2 - Consequência inescapável da crise e da mudança de rota: Zapatero perdeu completamente a capacidade de governar. Acabou anunciando sua renúncia a uma nova reeleição, entregou a liderança do partido a seu vice, Allfredo Pérez Rubalcaba, e ainda antecipou a eleição de março de 2012 para 20 de novembro deste ano.
3 - Nos três meses que faltam, dá para fazer alguma coisa mais para acalmar os mercados? É evidente que não. Qualquer nova política depende, em tese, de quem for eleito em novembro, muito provavelmente o líder da oposição, Mariano Rajoy.
Mas os mercados não respeitam os tempos da política, necessariamente mais lentos. Atacam dia após a dia e vão sitiando governo após governo.
Não é à toa que o historiador britânico Niall Ferguson escreveu, tempos atrás, que a austeridade vem sendo "uma máquina de matar governos".
Barack Obama foi a mais recente vítima. Cedeu praticamente tudo ao fanatismo Estado-fóbico do Tea Party. Dá até pena do presidente norte-americano quando ele insiste, como o fez no seu pronunciamento desta terça-feira, após o voto no Senado, em incluir no ajuste fiscal o que é de puro bom senso.
Disse Obama: "Necessitamos um enfoque equilibrado (...) o que significa também [além de cortar gastos] reformar nosso código fiscal para que os americanos mais ricos e as maiores corporações paguem sua justa parte. E significa livrar-se de subsídios às companhias de gás e petróleo e tapar buracos que ajudam bilionários a pagar menos do que professores e enfermeiras".
É um ponto de vista radical ou meramente racional, de puro sentido comum? Para os fanáticos do Tea Party, é radicalismo, como deixou claro para o "New York Times" Jenny Beth Martin, coordenadora nacional do "Tea Party Patriots", um desses grupos fundamentalistas que se inseriram na política norte-americana:
"A maioria do povo americano está do lado dos Tea Party Patriots, quando dizemos a nosso governo que pare de gastar demais. Isso faz dos Tea Party Patriots a corrente principal e responsável, e coloca os gastadores irresponsáveis em Washington na franja radical".
Para entender o non-sense desse fundamentalismo, basta ler a análise de Sebastian Mallaby, diretor do Centro para Estudos Geoeconômicos do Council on Foreign Relations, o principal centro de pesquisas político-econômicas dos EUA:
"A recuperação econômica atual é extremamente frágil. Lares endividados não estão inclinados a gastar. Como resultado, o gasto do governo é, lamentavelmente, um necessário instrumento de crescimento".
Pena que os mercados, nos Estados Unidos como na Europa, desprezem o mais elementar sentido comum e cobrem mais sangue.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. Escreve às terças, quintas, sextas e domingos.
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