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denise fraga

 

07/08/2012 - 04h07

Melhor não

Quem não se lembra do dia em que o PCC parou São Paulo? Eu estava com o cartão de embarque na mão quando o alvoroço começou no Santos Dumont. Os telefones não paravam de tocar e as notícias do caos aumentavam um ponto a cada boca, fazendo os passageiros se atropelarem em telefonemas desesperados e tentativas de devolução de seus cartões de embarque.

Entretanto, otimista que sou, embarquei. Tinha compromissos, saudades, achei tudo muito exagerado e resolvi embarcar. Sobrevivi aos ataques aéreos que tinham vaticinado alguns adoradores de tragédias e, finalmente, cheguei à fila do táxi. Vi que realmente tinha acontecido alguma coisa.

A fila serpenteava até o fim do aeroporto. A cidade estava deserta e os táxis vinham escassos. Inacreditavelmente, os passageiros entravam, um a um, em cada carro que aparecia e partiam, deixando aquela anaconda humana à própria sorte. Ninguém reclamava.

Todos pareciam achar natural os preciosos veículos partirem com três assentos livres. Apesar do estado de emergência, ninguém se arriscava a subverter a vida de gado e o direito individual. Puxando minha malinha, fui até o rapaz do ponto.

--Moço, o senhor não quer perguntar para cada passageiro se ele se importa de dividir o táxi? Daí o senhor pergunta aos passageiros da fila quem vai para o mesmo destino, que tal?

--Eu não posso fazer isso.

--Por que não?

--Melhor não.

--Eu posso?

Ele ficou calado. O passageiro da vez topou a sugestão, eu me animei e gritei para a fila: "Vila Mariana!". Alguns ficaram com medo de sair do andar "natural" das coisas, outros, de precisar conversar ou, pior, ter que travar uma eventual disputa sobre quem seria deixado primeiro.

Mas vieram os voluntários. Os indecisos me olhavam num misto de admiração e desdém. Lá pelo quinto táxi lotado, o rapaz do ponto me encarava feio pensando que perderia seu emprego.

Eu, que estava me deliciando com a subversão e a capacidade de autogestão humana, fui ficando constrangida. Me deu uma súbita vergonha de estar ali, brincando de salvadora da humanidade. O passageiro da vez disse o destino, era ao lado da minha casa. Gritei. Veio um senhor e mais ninguém. O táxi ia sair. Fui. No caminho, nenhuma explosão, nenhum tiro. Viemos conversando sobre como o trânsito melhoraria se organizássemos uma central de assentos disponíveis, tanto em táxis quanto em carros particulares. Utopia. Melhor não.

denise fraga

Denise Fraga é atriz e autora de 'Travessuras de Mãe' (ed. Globo) e 'Retrato Falado' (ed. Globo). Escreve a cada duas semanas.

 

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