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denise fraga

 

16/10/2012 - 03h30

Cadê o cinegrafista?

Foi quando deitei a cabeça no lavatório que vi a cena. Nem pude aproveitar as mãos deliciosas de minha cabeleireira: um homem morria na televisão pendurada.

Passaram mais duas vezes a imagem: o ladrão esperando na fila do caixa eletrônico atrás do rapaz, depois apontando a arma, o rapaz tentando argumentar e os três tiros implacáveis.

Minha dor maior não vinha dos tiros, já estamos bem acostumados a eles, mas da argumentação impotente, surpreendida pelo disparo, exibida em repetição. O telejornal seguiu com a previsão do tempo e fiquei lá, com a água escorrendo pela nuca.

Minha coleção de imagens trágicas aumenta dia a dia. Graças a Deus, a maioria já é virtual. Lembrei-me de uma noite de muitos anos atrás em que cheguei da faculdade, sentei no sofá com o prato na mão e vi um corpo caindo de um prédio.

Era uma imagem rara, um soco no estômago. Já tinha dado a primeira garfada e não pude mais engolir a comida, quando percebi que no canto da tela estava escrito "ao vivo".

Eu comia enquanto o corpo caía. O cinegrafista era gentil, não levava a câmera ao solo. Chegado o corpo ao chão, o quadro subia veloz para o incêndio novamente. Mas havia um cinegrafista. Um homem, suponho, esfuziante de prazer pela captura de tal imagem, mas com a dor e a delicadeza necessárias para não filmar Dona Morte.

Imagino que seja mesmo muito sedutor para os telejornais o uso do material vindo das câmeras de segurança. Nem ligam mais para a falta de qualidade da imagem diante de tão exuberante conteúdo.

Se uma freada na esquina lota as janelas dos prédios, imagina o que não dá de audiência a cena das crianças de Realengo, correndo ensanguentadas pelo corredor, filmada pelo cinegrafista invisível?

Pode? Deve poder, existe, está aí. Mas algo me parece desleal. Não havia um cinegrafista se esquivando dos tiros. É como pescar com rede e não com arpão. E barateia o peixe. Gostaria de ver uma estatística para saber se as câmeras de segurança são de maior serventia à mídia ou à polícia.

Contei a história à mesa do jantar e meu filho perguntou: "Prenderam o ladrão?". "Não sei, essa parte não foi filmada." Mas podemos ficar tranquilos que chegará o dia em que tudo será.

As câmeras se multiplicam e a banalização do horror também. Saberemos de tudo, teremos tudo testemunhado e seguiremos seguros, com toda a vida arquivada, parecendo nos fazer chegar a algum lugar.

denise fraga

Denise Fraga é atriz e autora de 'Travessuras de Mãe' (ed. Globo) e 'Retrato Falado' (ed. Globo). Escreve a cada duas semanas.

 

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