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fabrício corsaletti

 

14/10/2012 - 10h45

Voz de velório, bicarbonato e culpa

Minha mãe é dentista. Meu pai é dentista. Minha irmã é dentista. Mas só minha mãe trata dos meus dentes. Meu pai tentou tratar uma vez, brigamos. E quando minha irmã se formou eu já era cliente antigo da minha mãe. Como em time que está ganhando não se mexe, achei melhor nem experimentar. De modo que à minha intimidade bucal apenas minha mãe tem acesso.

Quer dizer, tinha. Pois há cerca de um mês fui a uma dentista nova, paulistana, que encontrei no site do plano de saúde, a fim de desgastar a restauração feita por minha mãe quatro dias antes e que estava me incomodando.

Eu disse pra minha mãe que estava alta. Ela disse que eu ia me acostumar. Peguei um ônibus em Anastácio (divisa com Mato Grosso do Sul) e voltei pra São Paulo. Durante três dias, fiz o que pude pra não enlouquecer: dei aulas, saí com amigos, comprei uma esteira, vi cenas da Suelen na "Avenida Brasil".

Mas nada --nem trabalho, nem uísque, nem Isis Valverde-- é capaz de distrair o incômodo de uma obturação que ficou alta. Você tem a sensação de que nunca mais vai fechar a boca, e começa a morder o próprio dente como um cachorro corre atrás do próprio rabo.

Liguei pra minha mãe e perguntei se podia. Ela respirou fundo e, com voz de velório, me autorizou.

O consultório ficava na avenida Angélica. Fui a pé. Chovia. Meu guarda-chuva estava com algumas hastes quebradas, e entrei ensopado na sala de espera --o que me deixou um pouco constrangido, pois lembro da minha mãe reclamando, na hora do almoço, de pacientes muito mal arrumados ou que não escovavam os dentes antes de ir ao dentista. Os dentes pelo menos eu tinha escovado.

Sentei no sofá e abri uma revista. Lá dentro, uma criança berrava. A dentista tinha voz macia. Pensei na minha mãe, que também tratava de crianças. Pensei em mim quando era criança e passava de bicicleta no consultório e pedia dinheiro pra tomar sorvete. Pensei na minha mãe vestida de branco, abaixando a máscara pra me beijar --seu perfume mezzo Paris, mezzo bicarbonato.

Voltei alguns parágrafos pra entender o que estava lendo. O menino, maior do que eu imaginava, passou por mim; a mãe veio atrás dele. Em seguida a dentista me chamou.

Tinha mais ou menos a minha idade e estava grávida. Quando lhe contei que era a primeira vez que ia a outra dentista, riu de um jeito estranho. Disse que minha mãe sentiria ciúmes. Depois elogiou minhas obturações. Enquanto desbastava a resina, me contou que seu pai tinha morrido havia quatro meses e que seu filho se chamaria Antonio.

--Com ou sem acento?-- perguntei. Ela me olhou espantada. Era de fato uma pergunta idiota.

Antes de ir embora, agradeci de forma exagerada e prometi que lhe mandaria meus livros, inclusive os infantis, que eu dedicaria ao Antonio.

--Você parece um cara muito culpado-- ela disse.

Dentro do elevador, me dei conta de que tinha esquecido o guarda-chuva na sala de espera. Não quis voltar pra pegá-lo. Por sorte, tinha parado de chover.

fabrício corsaletti

Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, Fabrício Corsaletti é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

 

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