Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

humberto luiz peron

 

17/01/2012 - 12h54

Vida de jogador: fracasso e sucesso

Muitas vezes, de tanto falar e escrever sobre futebol, esquecemos de observar, comentar, e, muitas vezes, não nos perguntamos o que os jogadores pensam sobre determinados assuntos. Fechando esta pequena - duas semanas - retrospectiva comemorando os dez anos deste espaço, publico duas histórias com finais diferentes de profissionais. Na próxima semana volto com textos inéditos e pitacos no www.twitter.com/humbertoperon

Vida de jogador: hora de desistir (publicado em 18/03/2008)

Diariamente, milhares de meninos tentam iniciar a carreira de jogador de futebol. São inúmeras tentativas nas chamadas peneiras na esperança de conquistar um lugar num time. Talvez, muitos não percebam, mas são inúmeros jovens e famílias que fazem de tudo para ter uma chance.

E, quando eu falo tudo, inclui o esforço financeiro da família e o sacrifício dos adolescentes que param de estudar para ficar viajando pelo país em troca de uma oportunidade.

Mas, mesmo passando pelo pequeno funil dos testes e conseguindo chegar a ter uma oportunidade num clube estruturado, não é garantia que a vida profissional estará garantida. Aliás, arrisco a dizer que se eles não estourarem, a vida desses jovens está perdida. Pois, ou vão ter que jogar em clubes que pagam --quando pagam-- salários muito baixos, ou vão ter que começar suas vidas sem ter nenhum conhecimento de outra profissão.

É uma situação difícil: aos 20 anos você descobrir que se tornou um inútil e que não vai conseguir mudar a sua vida e a de sua família. Recebo muitos e-mails de jovens e de jogadores com a carreira profissional no início que me pedem indicação de pessoas em clubes que eu posso indicar para que eles tenham mais uma chance na carreira.

Uma vez, quando eu esperava o transporte que me levaria de um centro de treinamento de volta para a redação, o trânsito caótico de um final de tarde com chuva intensa em São Paulo era um sinal de que o carro demoraria a chegar.

Numa época em que os celulares eram artigos de luxo, a comunicação com o motorista preso no engarrafamento era impossível. Só me restava esperar. Ao meu lado havia um jovem que, sentado, olhava para o nada.

Como não o conhecia e o time passava por uma fase de reformulação, arrisquei uma pergunta: "Você é jogador?"

"Era", veio uma resposta lacônica.

"Era? Como assim? Você não me parece alguém que não possa mais jogar futebol", argumentei.

"Pois é. Eu decidi parar. Vim acertar minha situação, rescindir o meu contrato e ver se eu tinha alguma coisa para receber", ele disse enquanto olhava para o horizonte.

Vendo minha cara de espanto, ele continuou a falar.

"Pois é. Só agora aos 23 anos eu percebi que não dava para ser jogador profissional. Eu poderia até enganar em vários times pequenos, jogar em times das divisões inferiores, mas a minha carreira não chegaria a nenhum lugar. Você começa a sonhar em ser um craque, ser milionário e ter um carrão, jogar na seleção. Mas em pouco tempo você percebe que não vai acontecer nada disso. Você começa a sentir que há algo de errado quando fica direto na reserva dos juniores. Você treina, espera a troca do técnico para ter uma nova oportunidade, o treinador é trocado e a chance não aparece.

Aí você estoura a idade e começa o inferno. Sem chances de subir para os profissionais, o clube começa a te emprestar. Lá vai você para lugares e times que nunca ouviu falar. Começa a vida de cigano. Você vive em alojamentos, come mal e não recebe. Eu ficava três meses num clube, eles não pagavam e eu voltava para cá. Lógico que eu nem treinava aqui e, logo depois, eles me emprestavam, de graça, para outro time. Mais sofrimento, mais alojamentos, mais falta de material, falta de estrutura e salários atrasados.

De vez em quando aparece um malandro oferecendo um time para jogar. Um me ofereceu um contrato no exterior. Só que ele queria ficar com metade do que eu iria ganhar. Outra coisa, eu tinha que pagar essa quantia adiantada e iria para um país que eu não conheço sozinho. Não dá para encarar isso. Já vi muitos amigos meus que foram enganados e passaram fome lá fora.

Não dava mais para eu me enganar. Com a minha idade eu não vou estourar mais. Tem um monte de cara que começou comigo fazendo sucesso e veja minha situação, eu estou aqui sentado sem saber o que fazer da minha vida. Vou voltar para a casa da minha família.

Vou ter que seguir a carreira do meu pai, ou seja, ser pedreiro. Infelizmente, vou passar a vida vivendo de bicos, não me resta mais que isso. Do futebol vai ficar só o que eu tenho nessa mochila. Uma camisa, dois pares de chuteira e algumas fotos. Não consegui sobreviver no meio do futebol'.

O meu carro chegou e eu fui embora. Nem descobri o nome do rapaz, mas até hoje me lembro de suas palavras e de sua coragem de romper o caminho de realizar um sonho que ele sabia que nunca poderia alcançar.

Vida de jogador: a importância de um título (publicado em 2/5/2005)

Outro dia, conversando com um goleiro, percebi a importância que um título tem na carreira de um jogador e quanto é importante para que ele tenha respeito de seus companheiros de clube. O personagem que me deu o depoimento pouco importa, vale o conteúdo.

"Sempre fui um goleiro acima da média. Afirmo isso sem nenhum tipo de modéstia. Desde garoto gostei de atuar na posição. Sempre fui goleiro, não me lembro de mim mesmo jogando na linha, marcando gol. Me encantavam as defesas, a permissão de usar as mãos, os uniformes. Até hoje me cativa a solidão que os goleiros vivem. Se o time faz um gol, ninguém corre para te abraçar. Jogando no gol, o arqueiro só tem uma certeza: ou ele sai como herói ou como bandido. Na minha posição não há meio-termo. O goleiro pode não ter o mesmo esforço físico que qualquer outro jogador, mas o desgaste mental é impressionante. São 90 minutos e um só pensamento: 'eu não posso falhar'.

Voltando a falar da minha carreira. Comecei jogando num time médio, que sempre brigava para, no máximo, ficar entre os oito melhores. Outra vez, vou te afirmar sem modéstia: o que o time conseguia a mais do que isso era sempre graças às minhas atuações. Devido às minhas defesas, o time parava os mais fortes esquadrões da época, mas como não é possível fazer milagres em todo jogo, o time sempre saía no meio do caminho e minhas atuações eram esquecidas conforme os campeonatos chegavam às fases decisivas.

Mas, graças a uma atuação muito boa contra o time que era o maior esquadrão e que conseguiu o bicampeonato de um campeonato muito importante, acabei jogando nesse time. Aliás, chegando a este clube, tive um dos maiores exemplos de companheirismo de toda minha carreira. A pessoa que me deu mais apoio foi o ex-goleiro titular. Sempre me dava apoio, conselhos.

A minha primeira temporada no novo clube foi sensacional. Logo nos primeiros jogos virei ídolo e referência do time, que era bicampeão e caminhava a passos largos para o tri. Se o ataque não resolvia, todos sabiam que as minhas defesas garantiriam a vitória. Foi assim durante toda a temporada. Até chegar à final.

Seria minha primeira decisão numa equipe de ponta, como titular absoluto. Achei que finalmente me consagraria. Puro engano. Talvez envolvido pelo 'oba-oba' em torno do meu desempenho, não me concentrei como deveria para aquela decisão. Em quinze minutos, já tinha tomado dois gols, ou melhor, dois frangaços. Toda minha temporada brilhante foi destruída em apenas um quarto de hora. É lógico que um time que leva dois gols logo no início, ainda com duas falhas do seu goleiro, tem poucas chances de recuperação. Perdemos o título.

Nunca vou esquecer o olhar dos meus companheiros nos meus frangos. Por mais que eles falassem palavras de incentivo, era nítido, pelos olhos deles, que queriam me xingar e muito. Fiquei desmotivado e acabei me transferindo para um time pequeno, muito fraco, em que tinha alguns amigos com quem eu jogava peladas nas minhas folgas de segunda-feira. Aliás, jogador se queixa do excesso de jogos, mas a primeira coisa que faz quando tem folga é jogar futebol.

Sabia que não faria sucesso no meu novo time. A estrutura era ruim e pouco joguei, pois a equipe tinha um goleiro que já tinha uma história no clube. Em pouco mais de um ano, saí de um time vencedor que buscava títulos, em que era titular, para um time que comemorava simples vitórias.

Pensei em parar. Já estava ficando velho, com alguns anos de carreira, quando recebi um telefonema. O "time grande" me queria de novo. Só que a princípio como terceira opção para o gol, ou para completar o elenco. Sem pensar muito, aceitei e voltei. Como terceiro goleiro, sabia que teria poucas oportunidades. Muitas vezes, cheguei a completar o time de reservas como atacante. De repente, o goleiro titular teve um problema de fratura no nariz e não pôde mais jogar. Agora me sentia mais útil, pelo menos ficava no banco. Depois de mais um tempo, o outro goleiro machucou o joelho e voltei como titular.

Logo na minha primeira partida, passei sem tomar gol. Pronto. Ao longo do campeonato, fui recuperando a confiança e o time também. Conseguimos chegar à final outra vez. Dessa vez, joguei uma partida boa, garanto que não falhei, mas não deu.

Apesar da minha recuperação, começaram aqueles comentários maldosos. Muitos passaram a me chamar de "pé-frio". Por mais que você tente ficar imune aos comentários, você passa a se cobrar. Quantas noites demorei para dormir pensando nos títulos que perdi.

Eu queria e precisava de um título.

Veio mais um ano. O engraçado é que aquela temporada era um mistério para mim. Não sabia se seria aproveitado. Fiquei com medo de ficar no limbo de novo, ou ter que ir jogar em um timeco outra vez. Após os treinos da pré-temporada, mistério. No último treino antes da nossa primeira partida oficial, fui muito bem. Pena que os principais jogadores e líderes da equipe não estavam. Pensei: eu sou azarado mesmo, hoje que eu arrebento e ninguém me vê.

De qualquer maneira, fui relacionado para a primeira partida. Chegando no vestiário ouvi a pergunta: "você quer jogar?". Já mais experiente, disse na hora: "é lógico". Pronto. Seria a minha chance e eu sabia que não poderia perder. Primeiro eu sabia que tinha que jogar bem, pois tinha dois goleiros no banco que poderiam jogar em qualquer time: o "bicampeão" e o goleiro que tinha se machucado no nariz (aliás, outro exemplo de companheiro, não teve um jogo que eu não entrasse em campo e ele não me desejasse um bom jogo).

Para encurtar a história. Chegamos mais uma vez à final. Seria minha terceira final em três campeonatos disputados por "um time grande". Seria a quinta final do time em seis anos. É lógico que já começaram os comentários de novo. Passei toda a semana da final ouvindo os comentários de sempre. Pé-frio, perdedor etc. É lógico, como já disse antes, que em algum momento isso acaba chegando ao seu ouvido.

Na ida ao estádio, senti a confiança de todos. Chegamos cedo e todos se concentraram. Eu já escolado de outras finais, escapei das entrevistas, dos tapinhas nas costas. Fui o último a entrar no vestiário e fui o último a ir para o corredor do vestiário. No campo, evitei falar com muitas pessoas. Na verdade, só falei e ouvi as palavras dos outros goleiros. Veio o jogo e desde o começo já sabia que finalmente eu seria campeão.

A certeza veio quando, ainda no primeiro tempo, eu fiz duas defesas "sem querer". Uma em um chute, de sem pulo, que eu só levantei a mão no reflexo. Outra numa falta em que eu não vi a bola saltei e ela caprichosamente bateu na minha mão e foi para escanteio.

Mas a minha grande defesa da partida eu fiz de maneira calculada. Faltavam uns dois minutos para acabar o jogo, quando o atacante entrou livre pela direita e deu um chute forte, rasteiro e cruzado. Consegui saltar e segurei a bola com a ponta da minha luva. Antes que qualquer atacante pudesse finalizar eu consegui pegar a bola e trazer junto ao meu corpo. Hoje, vendo essas imagens, vejo que tudo aconteceu muito rápido, mas na minha memória parece que esse lance demorou uma eternidade.

Depois dessa defesa, o jogo poderia durar mais um dia que eu não tomaria um gol.

Logo após o apito final, a festa. Lembro dos gritos da torcida, dos meus companheiros me carregando, de eu cumprimentar um a um todos os meus companheiros, da invasão de campo, da volta olímpica. Sensações das quais eu sempre tinha chegado perto, mas que nunca tinha sentido.

Foi o meu primeiro título importante, jamais o esquecerei. Mas, mais do que a festa, esse título mudou minha vida profissional. Após ele, passei a ser respeitado no meio e tive confiança para conquistar uma coleção de títulos incríveis."

Após o depoimento, este goleiro não falou mais nada. Fez um gesto de positivo, virou as costas e foi embora.

humberto luiz peron

Humberto Luiz Peron é jornalista esportivo, especializado na cobertura de futebol, editor da revista "Monet" e colaborador do diário "Lance". Escreve às terças-feiras no site da Folha.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página