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hélio schwartsman

 

29/12/2011 - 07h02

Ciência x Judiciário

DE SÃO PAULO

Aproveito a crisezinha no Judiciário para propor uma reflexão mais geral: o sistema de Justiça, como o concebemos e administramos, faz algum sentido? E a resposta a essa candente questão, já o antecipo, é um "sim" pontuado por muitos "nãos". Mas comecemos pelo começo.

O problema é basicamente a ciência, que não tem sido gentil com o Direito.

Praticamente todos os sistemas jurídicos do Ocidente se baseiam na capacidade dos indivíduos de decidir entre o certo e o errado, mas uma série de descobertas científicas feitas nas últimas décadas arranham bastante essa noção.

Psicólogos, por exemplo, demonstraram de inúmeras maneiras que mesmo o mais mentalmente saudável dos seres humanos pode agir como um sádico, infligindo castigos e aplicando "choques elétricos" em seus semelhantes, se for submetido a um pouco de pressão social para fazê-lo. A tese da obediência devida, em que pese minar o conceito de Bem x Mal, não era tão estapafúrdia assim.

Mesmo para os que seguem acreditando que o crime é uma questão de frutos podres, estudos psicológicos e neurocientíficos mostram que existem certos tipos de personalidade mais propensos a cometer delitos. A relação não é determinista, mas probabilística. O indivíduo que obtém uma pontuação alta nos testes para psicopatia ou não está fadado a assassinar os pais, devorar os vizinhos e disparar sua metralhadora contra criancinhas numa creche. Não obstante, encontraremos proporcionalmente mais pessoas com altos escores nas escalas de psicopatia, de personalidade narcisística ou "borderline" nas cadeias do que na população geral.

Para quem gosta de explicações ainda mais mecanicistas, conhecemos hoje várias patologias que comprometem razoavelmente a capacidade do indivíduo de controlar seus impulsos. Para além de psicopatas, esquizofrênicos e pavios-curtos, existem certos tipos de demência e até tumores que levam as pessoas a meter-se em encrencas legais. Ao que tudo indica, encontraremos mais explicações desse tipo à medida que avançarmos na compreensão do funcionamento do cérebro.

Não é só. O delinquente ou suspeito é apenas uma das engrenagens do sistema judicial. Há uma série de experimentos que demonstra que os julgadores são extremamente suscetíveis a uma série de vieses cognitivos que comprometem bastante sua capacidade de decidir "objetivamente". Um de meus favoritos é uma pesquisa que saiu na PNAS sobre juízes do comitê que decide os pedidos de liberdade condicional em Israel. Os casos são distribuídos por sorteio e a junta os analisa rapidamente (uma média de seis minutos). O índice de rejeição é alto: só 35% dos pleitos são atendidos. O problema é que as concessões se concentram no período imediatamente posterior às refeições, quando os juízes estão descansados e bem alimentados. Nesses momentos, 65% dos pedidos são aprovados, contra zero nas horas de maior fome.

O destino de um cidadão pode assim depender mais do nível de glicose no sangue do magistrado (ou de como foi sua noite anterior) do que de uma apreciação objetiva das ações do réu e das leis.

Não nos esqueçamos das testemunhas, que ainda hoje desempenham um papel importante para estabelecer os fatos que serão analisados. Raramente uma testemunha filma ou grava o que se passou na cena do crime. Ela em geral se vale de sua memória, que, como sabemos hoje, é absolutamente não confiável. Embora acreditemos que nossas lembranças sejam registros mais ou menos fidedignos do que presenciamos, elas não passam de conexões entre neurônios que são reconstruídas e modificadas cada vez que as acessamos. Psicólogos não têm dificuldades para conceber e executar experimentos em que implantam memórias falsas na cabeça das pessoas, que são capazes de jurar que testemunharam o pseudofato.

"Crème de la crème", os neurocientistas são mais ou menos unânimes hoje em afirmar que o livre-arbítrio, que está na base da responsabilidade individual necessária para que os sistemas jurídicos parem em pé, não passa de uma ilusão, um simples efeito colateral de uma série de sistemas neuronais funcionando em rede.

Como sair dessa encrenca?

Trago em meu socorro Michael Gazzaniga, um dos mais importantes neurocientistas dos EUA e autor do recém-lançado "Who´s in Charge?: Free Will and the Science of the Brain" (quem está no comando: o livre-arbítrio e a ciência do cérebro), um dos melhores livros que li nos últimos meses.

Nessa obra, que mistura neurociência com física, filosofia e direito, Gazzaniga se propõe a salvar a Justiça do cerco a que os cientistas mais deterministas a submetiam. De um modo geral, ele consegue, ainda que tenhamos de remodelar um pouco a forma como pensamos o Judiciário e nos preparar para reformas futuras.

Começo com o argumento prático. Quer gostemos ou não da Justiça, quer a consideremos ou não "justa", precisamos dela. Tanto modelos da teoria dos jogos como evidências experimentais mostram que a cooperação entre grupos pequenos ou grandes só se torna viável se houver punições que inibam as ações dos "free-riders", isto é, de indivíduos dispostos a aproveitar-se do coletivo sem dar a sua cota de contribuição. Se desejamos sociedades estáveis, precisamos ter uma maneira de identificar os aproveitadores e puni-los. Sem isso, os grupamentos entram em colapso.

Sabendo aonde precisa chegar, tudo o que Gazzaniga tem a fazer é desengatilhar as armadilhas do determinismo. Curiosamente, ele vai buscar a ajuda dos físicos e matemáticos, que poucos séculos atrás eram os campeões dessa causa.

Para resumir umas cem das 260 páginas da obra, o autor lembra que a mecânica quântica foi como que uma pá de cal nos sonhos deterministas dos físicos. Einstein, um inimigo mortal dos "quanta", foi um dos últimos que ainda puderam sonhar com um universo onde "Deus não joga dados". Mas o fato é que Ele joga. Ao que tudo indica, a impossibilidade de determinar ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula está na natureza da matéria, sendo assim um dado da realidade e não uma simples incompletude da teoria.

Mais do que isso, a mente, aí incluída a ilusão de livre-arbítrio, é uma propriedade emergente do cérebro compreendido como um emaranhado de neurônios. E o que sabemos sobre a matemática dos sistemas emergentes nos garante que mesmo minúsculas alterações no estado inicial bastam para produzir mudanças dramáticas num horizonte de tempo mais dilatado. Em princípio, uma molécula a mais ou a menos de glicose ou qualquer outra interferência insignificante pode fazer a diferença entre um embrião desenvolver-se normalmente ou originar uma mente perturbada, que cometerá assassinatos em série. Trata-se de efeitos em princípio determinados, mas não previsíveis. Se isso não basta para salvar o livre-arbítrio, ao menos serve para relativizar o impacto de sua ausência.

Outro ponto importante lembrado por Gazzaniga é que o fato de a sociedade punir os "free-riders" é um dos componentes do sistema que precisa entrar na equação. Mesmo que todas as nossas ações sejam ditadas por átomos navegando aleatoriamente pelo Universo, a existência de um Judiciário que pode distribuir castigos é um dado da realidade que interfere no curso das partículas e, portanto, em nosso comportamento, uma propriedade emergente do cérebro físico.

A Justiça já não precisa ser vista como uma impossibilidade teórica. Isso, evidentemente, não significa que ela, no futuro, não precisará ser reformada, para adaptar-se aos novos tempos e a nossos novos conhecimentos sobre a mente.

PS - Dou uma folga de duas semanas ao leitor. Retomo a coluna no dia 19/1. Bom ano a todos.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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