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hélio schwartsman

 

29/03/2012 - 07h00

Torcidas homicidas

Ver pessoas morrendo em brigas entre torcidas não é exatamente uma novidade. O fenômeno é mais ou menos tão velho quanto as disputas esportivas em cidades grandes. Um dos episódios mais célebres e mortíferos de hooliganismo do mundo antigo foi a revolta de Nika, que teve lugar em Constantinopla no ano de 532 e quase custou o trono ao imperador Justiniano. Mais ou menos a metade da cidade foi destruída e houve milhares de mortos em consequência do acirramento dos ânimos nas corridas de biga, que faziam as vezes de futebol da época.

Não vou aqui entrar nos detalhes do motim, que podem ser bastante confusos. O importante a reter é que as torcidas organizadas da época, que se dividiam em azuis, verdes, brancos e vermelhos, não se limitavam a apoiar seu time de charreteiros, mas também se embrenhavam em controvérsias políticas e teológicas. Funcionavam como um misto de torcida, sindicato e partido político, o que ajuda a explicar a virulência dos protestos.

Quaisquer que tenham sido as causas estruturais da rebelião, o que a deflagrou foi o sentimento de vingança, contra o grupo rival e contra o imperador (a partir de um certo momento, as duas principais torcidas, os azuis e os verdes, se uniram contra o poder estabelecido). E a vingança, nós sabemos, é um dos motores da violência, não só entre torcidas, mas em todas as esferas da vida.

De acordo com Steven Pinker, em seu "The Better Angels of Our Nature" (os melhores anjos de nossa natureza), 95% das culturas do planeta chancelam explicitamente a vingança, que está presente em todos os episódios de guerra tribal até hoje estudados. Mesmo no mundo desenvolvido, ela responde por algo entre 10% e 20% dos homicídios. Sempre que a vingança é dirigida contra um grupo específico e não um indivíduo, temos, na melhor das hipóteses, enfrentamentos urbanos. Quando um dos lados é mais fraco que o outro, o resultado costuma ser um genocídio.

Antes, porém, de sair maldizendo a vingança, é importante frisar que ela é parte integrante da natureza humana e desempenhou papel de relevo ao longo de nossa evolução. Sua função precípua é a dissuasão. É ela que torna crível para nossos rivais a ameaça implícita de que reagiremos ao que percebemos como injustiças. Ela que evita que o sujeito bonzinho seja explorado pelos menos bonzinhos. Sem vingança, não haveria coesão nos grupos.

Modelos matemáticos do surgimento da cooperação mostram que a punição vingativa é necessária para que as sociedades sejam estáveis. Se não castigamos os "free-riders", aqueles que tentam se aproveitar dos esforços comunitários sem dar nada em troca, não há convivência possível.

Em termos neurobiológicos, a vingança começa com a ativação do circuito da raiva, que envolve o hipotálamo e a amígdala. Esse circuito também faz com que o córtex insular dispare, despertando as sensações de dor, nojo e mais raiva. Nenhuma delas, é claro, é agradável. É aí que entra a maleabilidade do cérebro humano, que consegue transformar esses sentimentos de aversão em prazer (doce é a vingança) quando processa as informações no modo de busca, o mesmo utilizado quando procuramos alimentos. Neste caso, quem se ativa é o striatum, estrutura envolvida na fissura por nicotina, cocaína e chocolate.

Num movimento paralelo, o circuito da empatia é desligado (ou a vingança não se efetivaria tão bem). Num experimento que deu o que falar, Tania Singer mostrou que homens conseguem desvencilhar-se da empatia com muito mais facilidade que as mulheres. Não é uma coincidência que rebeliões, revoltas e crimes passionais sejam atividades preponderantemente masculinas.

Para quebrar o ciclo das rixas e vendetas motivadas pela vingança, inventamos o Estado, mais especificamente, a ideia de que o poder público é a única parte legítima para "fazer justiça" e exercer o monopólio da violência. É uma forma inteligente de manter a punição sem criar um desentendimento que poderia dar lugar a uma nova rodada de violência. Quando eu sou castigado pelo Estado impessoal e não por um rival odiado, fica muito mais fácil renunciar ao impulso de acertar as contas com o inimigo.

Funcionou maravilhosamente bem. Pinker estima que esse processo, que teve início no século 16 na Europa, tenha reduzido a violência de 10 a 50 vezes. Os índices de homicídio despencaram da casa das centenas por 100 mil habitantes para poucas dezenas.

Governos tentam, com graus variados de sucesso, impedir as brigas entre torcedores valendo-se de métodos tradicionais, como identificar os responsáveis por brigas e processá-los. Por vezes, recorrem até a instrumentos juridicamente heterodoxos, como punir torcidas inteiras, sem individualizar as condutas delituosas.

Não vejo muito como evitar essas ferramentas, mas acredito que os recônditos da natureza oferecem outros caminhos que poderíamos explorar também.

A vingança é apenas parte da história. De par com ela vem o perdão. Pinker afirma que ele foi inicialmente menosprezado por psicólogos e biólogos, mas se revelou inesperadamente importante quando analisado à luz da teoria dos jogos.

O perdão, afinal, permite restabelecer a cooperação que tenha sido rompida por uma resposta equivocada ou mesmo por uma leitura errada das intenções da pessoa com quem interagimos. Não fosse por ele, todos os rompimentos seriam definitivos e poderiam dar ensejo a espirais intermináveis de hostilidades. É mais ou menos o que acontece no Oriente Médio.

Pelo menos em tese, poderíamos tentar mobilizar o mecanismo do perdão para pacificar as torcidas. Em contextos diferentes, isso já foi experimentado e leva o nome de justiça restaurativa. A ideia aqui é que perpetradores e vítimas (vamos supor que a distinção entre eles seja sempre clara) se sentam ao lado de parentes e amigos e um facilitador para expressar sua raiva e oferecer e receber o perdão, após relatar uns aos outros as dificuldades por que passaram ao enfrentar-se.

Eu sei que esses pedidos de perdão parecem uma tremenda de uma bobagem sentimentaloide. Há evidências, contudo, de que a coisa pode funcionar, ainda que apenas em algumas circunstâncias.

William Long e Peter Brecke analisaram 21 episódios de reconciliação entre Estados beligerantes e 11 em guerras civis. Concluíram que, nas disputas internacionais, os gestos de concórdia tendem a ser pouco eficientes. Já no caso das hostilidades internas, pacificações simbólicas se mostraram eficazes em 64% das ocasiões, nas quais não houve retomada dos conflitos.

Isso está de acordo com a psicologia do perdão, que prevê que a reconciliação fica mais fácil quando já existem elementos a unir as partes em conflito, como língua, nacionalidade, círculo de conhecidos, dependência mútua etc.

O interessante na psique humana é que, da mesma forma que não é difícil inventar uma distinção qualquer que divida um conjunto de pessoas em dois grupos artificiais e fazê-las odiarem-se, também é relativamente fácil (pelo menos em situações experimentais) desarmar essa arapuca evolutiva. Deveríamos tentar, escudados, é claro, pelo batalhão de choque, para qualquer eventualidade.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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