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hélio schwartsman

 

01/11/2012 - 07h00

A vida como ela é

Homo sapiens, vida inteligente, animal racional, penso logo existo. Essas expressões revelam um certo autodeslumbramento. Como espécie, não deixamos de nos impressionar com nossas próprias capacidades intelectuais. Temos motivos para isso?

Pessoalmente, penso que sim, mesmo reconhecendo que a diferença nas aptidões mentais entre homens, outros primatas e mesmo aves é muito mais de grau que de natureza. E, para tentar mostrar por que devemos nos orgulhar do que temos entre os ouvidos, peço licença para desenvolver e aprofundar a coluna publicada na edição impressa da Folha de domingo passado.

Ali eu comentava um artigo do físico Marcelo Gleiser, em que ele, mesmo diante da confirmação de que cerca de 5% dos planetas da Via Láctea têm massa semelhante à de nosso planeta, reafirmava sua confiança na hipótese da Terra rara, segundo a qual a vida multicelular é um fenômeno relativamente incomum no Universo.

A tese, lançada pelo paleontólogo Peter Ward em 2000, tem um problema inicial difícil de superar. Nosso n, o número de casos que temos para analisar, é de apenas um, já que, até hoje, só encontramos vida na Terra. Ainda assim, Ward consegue construir uma argumentação bastante persuasiva.

Para o autor, a vida microbiana pode ser bem mais frequente no Universo, senão trivial. Ele faz essa afirmação baseado no fato de que, para surpresa de cientistas, já encontramos em nosso planeta bactérias vivendo nos ambientes mais inóspitos, como ventas vulcânicas milhares de metros abaixo do nível do mar, gêiseres e até mesmo a profundeza dos solos, suportando todos os extremos de temperatura e pressão. Cogita-se até mesmo da possibilidade de o primeiro ser vivo terrestre ter surgido num cenário infernal destes e não numa espécie de sopa marítima primordial, como se especulava.

O ponto de Ward, contudo, é que, se essas condições bastam para gerar vida unicelular, precisamos de muito mais para produzir seres mais complexos e mais ainda para chegar aos animais. Aqui, uma série de fatores geofísicos e astronômicos que até agora só verificamos em nosso planeta foram determinantes. Eles incluem um eixo de inclinação de 23,5 graus, que nos permite contar com estações relativamente amenas e encontrar água no estado líquido; um campo magnético, que nos protege de radiações letais que vem do espaço; placas tectônicas, que ajudam na regulação térmica; a presença de uma lua maciça, que assegura um dia de mais ou menos 24 horas e temperaturas e marés razoavelmente estáveis; e a existência de um megaplaneta como Júpiter, cujo campo gravitacional funciona como um superaspirador de pó, nos protegendo de cometas e outros corpos celestes errantes que têm o péssimo hábito de chocar-se com a Terra. Deixo para lá exigências astronômicas de maior amplitude, como localização na galáxia e características específicas de nosso sol, que também podem ter sido fundamentais.

Qual proporção dos 5% dos planetas de massa semelhante ao nosso que reúne também essas condições?

E isso é apenas parte da história. Uma vez que a vida animal tenha sido criada, quais as chances de consciência e inteligência também surgirem? Em outras palavras, a evolução de organismos complexos leva necessariamente à consciência e à inteligência?

Robert Wright, autor de "Nonzero: The Logic os Human Destiny" (diferente de zero: a lógica do destino humano) diz que sim, mas seu argumento é mais matemático do que biológico: complexidade engendra complexidade, levando a uma corrida armamentista entre espécies cujo subproduto é a inteligência. Para o autor, a seleção natural leva inexoravelmente à maior complexidade, que tende a recompensar a maior integração social, para a qual algum tipo de inteligência é uma pré-condição. A própria evolução teria, assim, metas e objetivos.

Essa visão, entretanto, está muito longe de ser consensual. Stephen J. Gould e Steven Pinker, por exemplo, dizem com bastante ênfase que nossos dotes intelectuais são em grande medida tributários do acaso. Para eles, é apenas devido a uma sucessão de pré-adaptações e coincidências que alguns animais transformaram a flexibilidade e a capacidade de resolver problemas em estratégia de sobrevivência. No clássico experimento mental proposto por Gould, se rebobinássemos o filme da evolução e reencenássemos o processo mudando apenas alguns detalhes do início, seriam grandes as chances de não chegarmos a nada parecido com mamíferos, o homem e a inteligência.

Se um cometa não tivesse se chocado com a Terra 65 milhões de anos atrás, por exemplo, os dinossauros provavelmente teriam estendido seu reinado por mais alguns milhões de anos, sem dar aos mamíferos a chance de ocupar diferentes nichos ecológicos a partir dos quais evoluíram para tornar-se a classe dominante no planeta. Já descambando para a ficção científica, podemos até imaginar um cenário no qual os grandes lagartos desenvolvem inteligência. Há evidências de algumas espécies apresentavam sociabilidade suficiente para cuidar da própria prole, o que é um bom primeiro passo. Isso ocorreu com certas aves, que são, se quisermos, descendentes diretos dos dinossauros mais antigos.

Pinker chegou a travar uma polêmica com Wright acerca da questão. Para o linguista canadense, o único "objetivo" da seleção natural é maximizar a reprodução. Se, para isso, se vale de um aumento da complexidade e da cooperação, não dá para afirmar que essas estratégias sejam uma meta. Outras táticas utilizadas incluem maior velocidade, capacidade de voo, presas e trombas, mas nem por isso atribuímos valor teleológico a essas características.

Pinker também observa que a afirmação de que, se esperarmos tempo suficiente, a inteligência necessariamente surge é, na verdade, uma obviedade. Dado o tempo necessário, tudo que tenha uma probabilidade maior do que zero de ocorrer necessariamente surgirá. A questão é saber os 4 bilhões de anos desde que apareceu a vida na Terra estão mais perto do "tempo suficiente" ou do "milagre". E cabe sempre aqui o alerta dos estatísticos. Não é porque um fenômeno qualquer tem uma chance de apenas um em 1 bilhão de ocorrer que ele não vai acontecer exatamente no primeiro ano. O jeito certo de pensar essas questões é imaginar que em qualquer ano existe uma chance de 1 em 1 bilhão de o fenômeno x ocorrer.

Pessoalmente, eu fico com Gould e Pinker. Cérebros são apêndices biológicos muitas vezes dispensáveis. Meu exemplo favorito é o dos tunicados, um animal marinho que nasce com um pequeno gânglio cerebral que o ajuda a eleger um lugar com alimentação farta para fixar-se.

Assim que o faz, o bicho devora esse órgão energeticamente dispendioso e que se tornou inútil. Só o que se mexe pode precisar de um cérebro. Aqui, a inteligência, pelo menos em suas formas mais rudimentares, mais do que a quintessência de uma teleologia evolutiva, se torna um simples efeito colateral do movimento.

Não tenho dúvida de que é a inteligência que nos torna especiais entre os animais. Até onde se sabe, nenhuma outra espécie se preocupa com a transcendência nem produz literatura. Mas, exatamente porque somos inteligentes, não podemos perder de vista que essa nossa condição é em larga medida tributária do acaso.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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