Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

hélio schwartsman

 

22/11/2012 - 03h00

O discurso do PT

Como fica o PT depois do julgamento do mensalão? Lancei algumas ideias a respeito numa coluna da edição impressa na semana passada, mas, como não deu para dizer tudo e o assunto é importante, acho que vale a pena desenvolver. Minha tese central é a de que o partido, embora venha conquistando resultados bastante positivos nas urnas, atravessa uma crise existencial, talvez até anímica.

O PT surgiu de um amálgama de intelectuais de esquerda, lideranças sindicais e gente ligada aos setores progressistas da Igreja Católica. Embora o pluripartidarismo brasileiro tenha sido uma tentativa do regime militar de desinflar o crescimento da oposição, reunida no então MDB, a jovem legenda logo se destacou na multidão de siglas que apareceram no processo de abertura.

A agremiação prometia trazer um jeito diferente de fazer política. Não abria mão de seus princípios e, de forma talvez até exagerada, nem sequer negociava com outros partidos. Foi só muito a contragosto que os parlamentares do partido, entre os quais estava Lula, assinaram a Constituição de 1988, a qual acusavam de "reformista". No que diz respeito à moralidade pública, o PT se tornava quase religioso. Nesses primeiros anos, era a legenda de onde vinha a maioria das denúncias de corrupção e aquela cujos membros jamais apareciam nos escândalos. Gostando-se ou não das ideias que a agremiação defendia, era quase um consenso que ela prestava importantes serviços ao país, ao apresentar (e exigir) um novo padrão de comportamento moral dos políticos.

Cometo agora uma indiscrição. Nessa fase, eu próprio era um simpatizante levemente entusiasmado do partido. É claro que não comprava toda a sua plataforma --muitas alas ainda defendiam coisas como ditadura do proletariado e economia planificada--, mas imaginava que o PT poderia modificar o modo como se tratava a coisa pública no Brasil. E nós precisávamos, e ainda precisamos, de uma pequena revolução republicana. Ainda bem que a juventude (e a ingenuidade que costuma acompanhá-la) é o único defeito que não piora com a idade.

De toda maneira o PT não era bobo. Logo percebeu que, se não se abrisse e admitisse pelo menos a negociar com outras forças políticas, estaria condenado a jamais passar de um partido de oposição, capaz de vencer uma ou outra eleição majoritária local, mas sem chances reais de chegar ao poder central. Veio então a guinada para o centro. O partido reviu alguns de seus dogmas e admitiu fazer alianças com a burguesia e tudo mais. Lula escolheu José Alencar, um empresário, para ser seu vice na chapa vitoriosa de 2002. Para muitos, eu inclusive, esse foi um sinal de amadurecimento, ainda que se pudesse discutir a qualidade desta ou daquela medida.

O fato é que Lula finalmente chegou à Presidência. E aí veio o mensalão.

Voltando ao plano das inconfidências, a revelação do escândalo foi, para mim, um aprendizado. Foi aí que eu descobri o que significava a lei dos grandes números. É verdade que o político A pode ser mais honesto do que B. Pessoas variam em seu grau de comprometimento com a virtude. Mas, quando saímos do nível de indivíduos para chegar aos grupos, a tendência é que as diferenças se anulem, resultando no que nos habituamos a chamar de natureza humana. Basicamente, se há mais de quatro pessoas juntas, é melhor não pôr a mão no fogo pelo grupo.

Não sei bem o que os idealizadores do esquema do mensalão pensavam, mas, pelo que já li de psicologia, admito que sejam sinceros ao afirmar que não se sentem culpados. A mente humana é bastante criativa e liberal na hora de se autojustificar e oferecer racionalizações. E é preciso que seja assim, ou ninguém conseguiria conviver com si mesmo por muito tempo.

Uma possibilidade, levantada por meu amigo Marcelo Coelho no bom artigo que escreveu para o caderno especial do mensalão, é que, do ponto de vista político, José Dirceu julgasse mais legítimo "ajudar financeiramente alguns mequetrefes do Congresso em vez de ser obrigado a fatiar a administração pública em benefício dos chefões do PTB ou do PMDB".

Num mundo estritamente racional e focado unicamente nos objetivos, faria sentido. A compra de deputados provavelmente custaria menos do que os esquemas de cessão de ministérios "com porteira fechada", que é a marca das administrações brasileiras. Vantagem adicional, o esquema permitiria (mas não exigiria) nomear pessoas com perfil mais técnico para os cargos, o que poderia resultar em ganhos de administração.

O problema com esse tipo de raciocínio, além de negar as duas décadas de história pregressa do PT, é que a gestão pública não é uma corrida rumo a um único objetivo. As metas são muitas e frequentemente contraditórias entre si. Precisamos, por exemplo, nos manter no registro democrático, que exige o constante fortalecimento das instituições. A estratégia de cooptar deputados com pagamentos diretos introduz um desvio das rotas institucionais que não é muito compatível com a democracia.

Alguém poderia argumentar que oferecer cargos é apenas uma forma indireta (e provavelmente mais cara) de fazer a mesma coisa. Talvez, se tivermos em mente apenas a governabilidade. Mas, quando olhamos para o quadro todo, os métodos importam. Administrações, afinal, são transitórias, mas as instituições ficam.

Voltando ao PT, ele agora está perdido, incapaz de articular um discurso coerente para explicar o episódio. Suas principais lideranças se dividem entre afirmar que a agremiação não fez nada que outros partidos também não façam e denunciar um suposto complô da direita para condenar os mensaleiros. Nenhuma das alternativas convence.

É verdade, e já escrevi isso, que não é sempre que as instituições funcionam para punir políticos. Estão parados ou em banho-maria judicial casos verdadeiramente escandalosos envolvendo gente de peso, como a família Sarney e suas muitas traquinagens, Renan Calheiros e suas prodigiosas vacas, Jáder Barbalho, os panetones do Arruda e, é claro, o mensalão mineiro do tucano Eduardo Azeredo, que, embora seja cronologicamente anterior ao petista, encontra-se em fase processual anterior. A questão, porém, é que acusar malfeitorias alheias não é bem uma defesa. Na verdade, chega a ser patético que o partido que surgiu proclamando-se diferente dos demais agora se deblatere para ser tratado como igual.

No mais, é complicado que uma sigla que se aliou a Maluf, Sarney, Renan, Jáder e todos os políticos cujos métodos o PT condenava com justa veemência uma década atrás venha a insinuar que é perseguida pela direita.

A história do conciliábulo antipetista é ainda pior. É ridícula mesmo. O caso foi investigado, processado e julgado por gente que pode ser acusada de tudo, menos de ostentar um viés contra o partido. A PF, afinal, subordinada a um ministro petista, apurou a história, colheu provas e as levou ao Ministério Público. O procurador-geral, nomeado pelo próprio Lula, viu uma série de crimes e apresentou a denúncia. E o STF, de cujos 11 integrantes originais 8 chegaram ao cargo por indicação de presidentes petistas, após análise individualizada de cada caso, condenou a altas penas a maior parte dos acusados.

Mais recentemente, petistas vêm insistindo que o resultado se deveu à pressão da imprensa golpista. Eles parecem superestimar o poder da mídia. Não creio que estejamos com essa bola toda. Afinal, a esmagadora maioria dos casos de corrupção em algum momento ganha as manchetes dos jornais, mas nada acontece. No mais, é absolutamente esperado que pessoas, articulistas e editoriais se manifestem por ocasião de grandes julgamentos. Se seguirmos o raciocínio petista, as condenações de Chico Picadinho, o casal Nardoni. Pimenta Neves e dos autores de outros casos criminais que receberam atenção da imprensa seriam ilegítimas.

Se o PT tem a pretensão de pelo menos recuperar o nexo discursivo, precisaria trocar a lealdade para com suas antigas lideranças pelo pragmatismo e esquecer os mensaleiros. É atribuída a De Gaulle a frase segundo a qual a ingratidão é dever do político.

Algumas lideranças até arriscaram passos nesse caminho. Ninguém parece ter dado muita bola, mas, no último debate televisivo antes da eleição para prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, tentando explicar o mensalão, afirmou que o desenrolar do caso refletia o fortalecimento de instituições como a PF, Ministério Público e STF promovido por sucessivas gestões petistas. Tenho minhas dúvidas de que tal desfecho tenha sido fruto de ações deliberadas do governo, mas é preciso reconhecer que esse pelo menos é um discurso não incoerente e que preserva algo da história do partido. O mais provável, porém, é que, enquanto Lula estiver com as rédeas partidárias na mão, essa tipo de explicação permaneça nos subterrâneos, sendo usada apenas em situações de perigo, como foi o caso do debate.

Até onde é lícito fazer previsões em política, enquanto o PT não decidir o que quer ser quando crescer, continuará vivendo surtos esquizofrênicos. E, como a ausência de uma narrativa límpida não parece afetar seu desempenho eleitoral, isso poderá continuar por um bom tempo.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página