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hélio schwartsman

 

14/06/2007 - 00h03

A mãe de todas as confusões

Quando imaginávamos que tudo o que havia para dar errado no Iraque já ocorreu, novos desenvolvimentos sugerem que a encrenca pode ser ainda maior do que haviam antecipado os mais ferrenhos adversários da invasão norte-americana.

Com efeito, se arrependimento matasse, George W. Bush já deveria ter-se encontrado com seu Criador. É claro que o inquilino da Casa Branca jamais irá admiti-lo, mas, se lhe resta algum senso de objetividade, o mandatário deve estar amaldiçoando o dia em que se deixou convencer por assessores a despachar tropas para a região.

Na visão dos neoconservadores americanos, a intervenção bélica tinha como objetivos livrar o mundo da ameaça representada pelas armas de destruição em massa de Saddam Hussein, acabar com o apoio material e logístico que o regime de Bagdá oferecia a organizações terroristas como a Al Qaeda e destruir uma das mais sanguinárias ditaduras do planeta, plantando a semente da democracia no Crescente Fértil.

Não foi preciso mais do que algumas semanas para ficar claro que as armas de destruição em massa não existiam e que os supostos vínculos entre Saddam e a Al Qaeda não passavam de delírio neocon. É verdade que os iraquianos se livraram do ditador, mas apenas para mergulhar numa guerra civil particularmente mortífera cujo fim ninguém vislumbra. Tudo o que George W. Bush conseguiu semear no Oriente Médio foi instabilidade política e a proliferação de organizações terroristas subsidiárias da Al Qaeda.

No plano interno dos EUA, a intervenção ajudou Bush a conquistar seu segundo mandato, mas os próprios norte-americanos acabaram percebendo, quatro anos e US$ 430 bilhões depois, o tamanho da encrenca em que o presidente os meteu. A aventura já custou aos republicanos a maioria nas duas Casas do Congresso e, ao que tudo indica, os levará a uma derrota histórica no pleito presidencial de 2008.

E as coisas podem piorar ainda mais. Como mostrou reportagem de "The New York Times" desta semana, generais dos EUA estão mudando de estratégia para lidar com a insurgência. Num plano ousado, eles estão armando grupos sunitas vinculados ao antigo regime do partido Baath, de Saddam Hussein, que se disponham a combater núcleos sunitas ligados à Al Qaeda. Até há pouco, ambas as vertentes atuavam como aliadas atacando os soldados estrangeiros, mas há sinais crescentes de que os sunitas baathistas estão descontentes com as táticas dos integristas, que não hesitam em explodir civis sunitas para cumprir seus intentos.

A idéia segue uma lógica. Sunitas do Baath têm todos os motivos do mundo para odiar os norte-americanos que, afinal, acabaram com a sua festa ao derrubar Saddam. Só que, hoje em dia, eles odeiam ainda mais os fundamentalistas islâmicos e, desde sempre, mais ainda os "persas", que é como eles se referem aos xiitas. Não é impossível, portanto, que os sunitas baathistas, que sempre foram laicos, usem as armas norte-americanas para matar em primeiro lugar sunitas ultra-ortodoxos. Só que nada garante que eles não as utilizarão também para atacar norte-americanos e xiitas, hipótese em que os EUA estariam municiando seus próprios carrascos e ainda agravando a guerra civil iraquiana.

De resto, a mudança de estratégia coloca uma questão incômoda. Se os generais dos EUA cogitam de usar o pessoal de Saddam para fazer frente aos fundamentalistas, por que diabos eles derrubaram o ex-ditador?

Meu leitor habitual é testemunha de que sou um entusiasta da democracia, mas seria brigar contra os fatos deixar de reparar que é nos países árabes mais democráticos (ou menos tirânicos) que o integrismo prospera. As duas nações que permitem que sua população se manifeste livremente através de um sistema representativo são a Autoridade Nacional Palestina e o Líbano. E ambos estão com problemas. Os palestinos com o Hamas; e os libaneses com o Hizbollah e, mais recentemente, com o Fatah al Islam. Será que apenas ditaduras conseguem frear a ameaça fundamentalista islâmica?

Deixo essa intrigante questão para uma coluna futura. Por ora, voltemos ao Iraque, mais especificamente à sua fronteira norte, onde se localiza a região curda do país, que era a única a viver em relativa tranqüilidade. Não mais. O Exército turco está concentrando tropas na área e lançando disparos de artilharia contra o que classifica como posições de rebeldes curdos encravadas em território iraquiano. Os generais turcos já não escondem que gostariam de lançar uma operação de maior envergadura. Os EUA tentam, como podem, convencer Ancara a adotar um "low profile". Até aqui têm conseguido. A última coisa de que precisam é o envolvimento de mais uma nação estrangeira no "imbróglio" iraquiano.

A Turquia, é claro, exagera na retórica contra os curdos, etnia sem pátria à qual pertence cerca de 20% da população do país e que reclama a criação de um Curdistão independente, mas é inegável que existe um problema. Só nos últimos dois meses, 30 soldados turcos foram mortos em ataques, e nos primeiros nove meses do ano cerca de 600 pessoas foram mortas em atos de violência ligados aos militantes, segundo dados oficiais de Ancara.

Além da Turquia e do Iraque, há significativas populações curdas no noroeste do Irã e porções da Síria. Um eventual envolvimento direto da Turquia na explosiva questão curda, que enreda tantos países, elevaria a crise iraquiana a um novo patamar. Para agravar um pouco mais o quadro, os países árabes guardam profundo ressentimento da Turquia, que, até o início do século passado, dominava a região através do Império Otomano. O império acabou, mas as rivalidades, não. Na escala dos ódios regionais, os turcos ficam logo abaixo dos israelenses, mais ou menos empatados com os persas.

É esse xadrez de alta complexidade e muitas suscetibilidades que torna o Iraque uma verdadeira armadilha para Washington, cujos desdobramentos irão muito além do mandato de George W. Bush. Compreende-se que o atual presidente não retire as tropas do país. Fazê-lo equivaleria a admitir derrota. Mas, ao que tudo indica, nem mesmo o provável sucessor democrata de Bush poderá "declarar vitória e trazer os rapazes de volta". Pelo menos não tão rapidamente como a população gostaria. É que os EUA estão presos a uma rede de alianças e lealdades contraditórias que simplesmente implodiria com uma eventual fragmentação do Iraque.

No cenário mais provável, a dissolução do Iraque multiétnico daria lugar a três Estados, um de maioria árabe xiita (60% da população), outro árabe sunita (20%) e um terceiro curdo (20%), que tenderiam a guerrear entre si pelo controle dos ricos lençóis petrolíferos. O problema é que o conflito dificilmente ficaria restrito a esses três grupos. Como já vimos, a Turquia fará de tudo para impedir o surgimento de um Curdistão independente. Os Estados árabes da região não tolerariam bem uma interferência turca, que também poderia levar o Irã a agir. Como se não bastasse, os países árabes do Golfo dificilmente aceitariam o aparecimento de um Estado xiita com fortes vínculos com Teerã a oeste do canal de Shat al Arab. Muito provavelmente despejariam rios de dinheiro para armar e apoiar os árabes sunitas iraquianos, que se lançariam num combate sem tréguas contra os xiitas.

Nessa confusão, os EUA já nem saberiam quem apoiar, pois são nominalmente aliados de todas as partes, exceto o Irã. A Turquia está ao lado da Casa Branca na Otan. Já o governo de maioria xiita iraquiano foi criado e é sustentado política e militarmente por Bush. Também a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo são bons amigos de Washington. Mais do que isso, os EUA apesar de todo esse papo de etanol ainda são totalmente dependentes do petróleo da região.

Basicamente, Bush atirou os EUA nessa espécie de "mãe de todas as confusões". Vai ser muito difícil agora sair dali.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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