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hélio schwartsman

 

20/09/2007 - 00h02

Implodindo o Senado

A absolvição de Renan Calheiros levou muitos leitores a escrever-me advogando pela extinção do Senado Federal. Atribuo tal proposta ao calor da hora. É bom constatar que ainda há quem fique indignado diante dos espetáculos mais escancarados de corporativismo, mas o fato de Renan ter sido inocentado por seus pares não pode servir de pretexto para dissolver um dos braços do Legislativo. Se assim fosse, teríamos, para ficar no recente exemplo do mensalão, 19 vezes mais razões para acabar com a Câmara, que absolveu 19 deputados envolvidos com o escândalo. E este decididamente não é o caminho. Pelo menos por ora, a democracia não pode prescindir do Parlamento.

Seja como for, aproveito a ocasião para comentar o sempiterno tema da reforma política. Se me fosse dado redesenhar livremente as instituições brasileiras, eu provavelmente eliminaria o Senado. A maioria das democracias vive muito bem com Legislativos unicamerais, que tendem a ser menos onerosos e mais ágeis do que os sistemas de dupla representação. De resto, o Senado faz mais sentido no caso de federações em que os Estados tenham real autonomia, como os EUA, onde em tese existe até mesmo o direito de secessão.

Por aqui, a Constituição determina que as matérias realmente relevantes --e até alguns temas desimportantes-- sejam objeto de legislação federal, o que, aliás, teve como efeito colateral a transformação das Assembléias Legislativas dos Estados em órgãos esvaziados, a meio caminho entre um parlamento pleno e um foro para disciplinar assuntos locais, como o são as câmaras de vereadores.

Vale também lembrar que o "tributo federativo", compreendido como a compensação política dada às unidades mais fracas, é cobrado duas vezes no Brasil. Uma, como é natural, no Senado, onde cada Estado tem direito a três representantes, independentemente de população ou força econômica. Só que a mesma lógica volta a ser aplicada na Câmara, onde reaparece como distorção. A existência de pisos e tetos de representantes --nenhuma unidade pode ter menos de 8 nem mais de 70 deputados-- faz com que o voto de um cidadão roraimense, por exemplo, valha pelo de 11 paulistas, isto na Casa onde deveria valer o princípio do "um homem, um voto".

Feitas essas observações de caráter puramente teórico, convém retornar à realidade. A menos que haja uma revolução, são nulas as chances de o Senado vir a acabar, pela simples razão de que a norma que poderia extingui-lo precisaria ser aprovada pelos senadores --e em duas votações, por maioria de 3/5.

Não há dúvida de que o sistema político brasileiro pode e deve ser aperfeiçoado. Mas o modelo institucional está longe de ser nosso maior problema. Precisamos perder a mania de achar que tudo pode ser resolvido com reformas. Como a novela Renan Calheiros evidenciou, são os usos e costumes e não o arcabouço legal que conspurcam nossa política. Meios jurídicos de cassar o mandato do senador réprobo havia. Não foram aplicados porque os representantes dos Estados, amparados pelo voto secreto, não o quiseram.

Não vale a pena nos engajarmos em batalhas perdidas e causas ilusórias. O avanço institucional brasileiro já está ocorrendo e se dá principalmente por mudanças no "Zeitgeist", na sociedade. Até poucos anos atrás, era inconcebível até mesmo a idéia de que políticos pudessem ser julgados por corrupção e formação de quadrilha --e não porque não praticassem tais delitos. Hoje, isso está se tornando rotina, o que paradoxalmente contribui para a impressão de que as coisas estão piorando.

É preciso que insistamos na via consuetudinária, cobrando posições éticas das autoridades e protestando contra desmandos. Perderemos várias batalhas, como no caso de Renan, mas os protestos não caem inteiramente no vazio. Eles vão, ainda que muito mais lentamente do que desejaríamos, sedimentando novos padrões de aceitação para o comportamento de políticos. Ainda que o ritmo seja frustrante, estamos melhor hoje do que há duas décadas e, dentro de 20 anos, teremos provavelmente avançado um bocadinho mais.

Quanto às reformas, devemos nos centrar numas poucas minimamente realistas e dar-lhes tempo para que possam produzir efeitos. Meu elenco favorito inclui o fim do voto obrigatório e dos pisos e tetos de deputados, além é claro da revogação total do absurdo instituto do voto secreto em plenário.

Mais a longo prazo, podemos pensar no fortalecimento de mecanismos de democracia direta. Uma idéia que me parece particularmente interessante é a do "recall" do voto. Um episódio como o de Renan, por exemplo, poderia ser resolvido com o próprio eleitorado do senador desinvestindo-o de seu mandato. Aos mais céticos, recordo-os de que parlamentares metidos com escândalos como o mensalão e o dos sanguessugas tiveram baixíssimos índices de reeleição.

A democracia direta pode ser uma alternativa, desde que se observem cautelas fundamentais. É preciso lembrar as sábias palavras do estadista britânico Winston Churchill (1874-1965): "Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos". Com efeito, permanece válida a crítica de Platão. O povo pode muito facilmente tornar-se presa de demagogos, o que faz com que democracias tendam a sucumbir a tiranias. Isso está ocorrendo "on-line" na Venezuela, por exemplo, onde um Chávez sempre aplaudido pelo eleitorado vai pouco a pouco descaracterizando instituições que deveriam controlá-lo, como o Judiciário e o Parlamento. Contou aqui, é verdade, com a ajuda de uma oposição particularmente inepta, que, ao boicotar as últimas eleições parlamentares, deu ao mandatário o controle total do Legislativo. A representação, ao criar um grupo de políticos profissionais, pelo menos no papel diminui um pouco o risco de manipulações. Só que esse não é o único meio. Modernamente, democracias se caracterizam por um sistema de freios e contrapesos com a finalidade de garantir que nenhum indivíduo ou instituição acumule poderes excessivos. Cumpre reforçar esses mecanismos, adaptando-os a um contexto em que o cidadão exerça cada vez mais o poder de definir seu próprio destino. Num futuro ainda longínquo, quem sabe nossos netos possam prescindir de deputados e senadores, aprovando ou rejeitando leis diretamente em seus lap-tops enquanto tomam o desjejum.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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