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hélio schwartsman

 

29/11/2007 - 00h05

Fofocas e celebridades

Na manhã de segunda-feira, quando comecei a escrever esta coluna, três das cinco notícias mais lidas da Folha Online poderiam ser consideradas fofoca: "Daniel deixa equipe da Record irritada" (2º lugar), "Ministério abre processo contra dança erótica de Flávia Alessandra" (4º lugar) e "Meia Kaká, do Milan, vai ser pai" (5º lugar). As duas notícias "de verdade" eram: "Governador interdita Fonte Nova e lamenta acidente em nota oficial" (1º lugar) e "Polícia divulga nomes de sete mortos na tragédia da Fonte Nova" (3º lugar).

Arrisco dizer que, se não houvesse a catástrofe quentinha do desabamento do estádio, mexericos ocupariam ainda mais espaço. Mas o que são exatamente fofocas e por que elas provocam tanto fascínio?

É difícil até mesmo conceituar esse termo. Os dicionários que consultei trazem todos, ainda que com diferentes graus de ênfase, definições pouco abonadoras. Na melhor das hipóteses pintam-no como afirmação não-baseada em fatos; na pior, como dito malicioso, intriga.

Receio que ambas as significações fiquem muito aquém da verdadeira instituição que é a bisbilhotice. Para começar, trata-se de um universal humano, isto é, está presente em todas as culturas de que se tem conhecimento. Onde quer que existam três ou mais pessoas, haverá fofoca.

Não é difícil especular (verbo que, no fundo, é um dos sinônimos de fofocar) sobre a origem do hábito. Somos seres gregários dependentes do altruísmo recíproco. Só que nem todos os representantes da espécie apresentam a mesma propensão a colaborar. Assim, antes de dividir com alguém aquele filé de brontossauro (calma, gente, é só uma piada; não estou sugerindo que humanos e apatossauros conviveram) a duras penas obtido, preciso saber se esta pessoa é confiável, ou seja, se estará disposta a devolver a gentileza quando eu passar por dificuldades.

Alguns milênios lidando com a necessidade de coletar e manter informações sobre o caráter de cada membro do clã e da aldeia bastaram para nos tornar fofoqueiros profissionais. Verdadeiras sucursais da Abin, perseguimos com avidez dados sobre as pessoas. E vamos buscá-los onde eles estão disponíveis, isto é, com as vizinhas (a flexão no feminino é meio machista, admito, mas nem por isso menos real). Se os "dossiês" são ou não precisos é uma outra questão, menos importante.

Só que as aldeias cresceram e viraram cidades, algumas das quais depois se converteram em metrópoles. Não perdemos o hábito de comentar a vida alheia, apenas o direcionamos a grupos mais específicos como as celebridades, cuja principal função é justamente a de ter suas vidas transformadas em espetáculo para que possamos difamá-las ou, mais raramente, louvar-lhes as virtudes.

É aí que entra uma outra importante característica da mexeriquice. Além de nos municiar com informações potencialmente valiosas, ela ajuda a reforçar os vínculos sociais entre os membros da comunidade. Isso pode parecer paradoxal, sobretudo se você é o objeto da maledicência, mas um interessante trabalho de Robin Dunbar, do University College, de Londres, mostra que humanos dedicam em média 60% do tempo de suas conversações a futricas. A hipótese do antropólogo é que, com o advento da linguagem, a fofoca substituiu a catação de piolhos que, entre primatas não-humanos, constitui a principal atividade social. É através da limpeza de pelagem que se aprende, por observação direta, quais membros da comunidade tendem a colaborar e quais não, quem devolve um favor e quem não é confiável, e, a partir daí, se forjam as alianças e coalizões.

Dunbar vai além e sugere que os grupos humanos só puderam crescer em tamanho porque redes de intrigas possibilitadas pela linguagem tomaram o lugar da catação. É que a fofoca maximiza o número de relações que cada membro da comunidade pode manter com outros. Esse dado é consistente com a correlação positiva encontrada entre o volume neocortical e o tamanho do bando. Humanos poderiam relacionar-se com até 150 pessoas formando ainda grupos estáveis. Populações maiores tenderiam a dividir-se.

Há outros aspectos interessantes da fofoca. Pessoalmente, gosto de seu caráter subversivo. É inegável que ela representa poder, um poder informal e anônimo, o que o torna virtualmente incontrolável. Um rumor, mesmo que infundado, pode fazer ruir a mais sólida instituição bancária. A versão se torna maior do que o fato. E não podemos desprezar o papel que as piadas anticomunistas tiveram na queda dos Estados-satélites da URSS. Eram as anedotas a respeito das filas, da carência de produtos e da repressão, espalhadas pelas mesmas redes informais dos mexericos, que indicavam à população que os regimes eram menos sólidos do que a propaganda oficial fazia supor. Acho que seria exagero afirmar que a fofoca derrubou o Muro de Berlim, mas acho que dá para dizer que, sem o livre fluxo de informação por ela canalizado, os controles dos burocratas teriam funcionado melhor. Não é à toa que a fofoca, definida como "má língua" ("lashon hara" em hebraico), é condenada primeiro pelo judaísmo (Levítico 19:16) e, a seguir, pelo cristianismo e pelo islamismo --o que me fez ficar simpático a ela.

Antes, porém, de lançarmos a Internacional Revolucionária das Comadres vale lembrar que estamos diante de um poder ambíguo. A tagarelice também pode ser extremamente reacionária. Se o senso comum já tende a ser conservador, dotá-lo de canais de propagação informais e pouco afeitos à responsabilização individual equivale a massacrar a opinião minoritária e inovadora, que só subsiste através do registro escrito (uma novidade bem recente em termos evolutivos) ou em grupos muito grandes. Hoje, com o auxílio da internet, encontramos comunidades inteiras centradas em torno de idéias muitas vezes esdrúxulas.

Assim, quando nos apanhamos lendo as últimas do Daniel ou da Flávia Alessandra, e mesmo quando nos queixamos do baixo nível do público, que só quer saber de fofocas, estamos dando vazão a um dos traços que nos distinguem de outros primatas. Podemos e devemos apreciar tal característica de forma crítica, até para que possamos compreendê-la melhor, mas é tolice achar que conseguiremos eliminá-la. Assim como a religião, o tabu do incesto e as piadas de português (todo povo elege um vizinho para fazer troça), a fofoca é um universal humano ao qual, como humanos, devemos nos sujeitar. Paro um pouco antes de concluir que é nosso interesse pelos ditos e feitos da Daniela Cicarelli que nos torna humanos.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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