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hélio schwartsman

 

19/06/2003 - 00h00

A lógica da mentira

A cada dia que passa, fica mais claro que George W. Bush e Tony Blair mentiram para tentar provar para o mundo que o Iraque possuía armas de destruição em massa e representava uma ameaça global.

Já faz três meses que a guerra acabou, e as tropas anglo-americanas que vasculham o país ainda não foram capazes de exibir nenhum galão de arma química ou ogiva biológica. Funcionários dos serviços secretos norte-americanos e britânicos deixaram escapar à imprensa que foram pressionados por seus governos para produzir dossiês que contassem o que seus chefes queriam ouvir.

E assim foi feito. Já se demonstrou que boa parte do que Washington e Londres disseram para tentar justificar a guerra se baseava em falsificações grosseiras e teses pueris. (Até o tão celebrado resgate da recruta Jessica Lynch está mais para fraude do que para realidade, mas essa é uma outra história). Mais recentemente, uma autoridade do calibre de Donald H. Rumsfeld, secretário de Defesa dos EUA, admitiu que as tais armas poderão nunca aparecer.

Ainda mais sincero foi Paul Wolfowitz, subsecretário de Defesa e um dos principais formuladores da nova política externa norte-americana, que, numa rara inconfidência, afirmou que as armas não passaram de um pretexto. O argumento foi usado por razões burocráticas, porque armas de destruição em massa eram "o ponto com o qual todos concordariam". (Como há muita gente afirmando que Wolfowitz nunca disse nada disso e que suas declarações não passariam de invenção da imprensa liberal, tomo a liberdade de reproduzir as palavras exatas do subsecretário a Sam Tannenhaus, da "Vanity Fair", segundo a insuspeita transcrição do Departamento de Defesa: "The truth is that for reasons that have a lot to do with the U.S. government bureaucracy we settled on the one issue that everyone could agree on which was weapons of mass destruction as the core reason, but" --hold on one second).

O leitor cujo coração já foi endurecido pelas vicissitudes da vida poderá perguntar: o que há de tão anormal nisso? Afinal, todo mundo mente. Desconfio de que até Immanuel Kant e George Washington --lá se vai a renovação de meu visto para os EUA-- mentiam. E, se esse princípio já vale para pessoas físicas, com muito mais razão se aplica a governos. Todo governante mente. Mente para chegar ao poder e, lá estando, mente ainda mais para conservá-lo.

Não há aí necessariamente um julgamento de valor. Em algum grau, a mentira, a encenação fazem parte do jogo democrático, que opera muito no plano simbólico e conserva elementos teatrais: o eleitor faz-se "representar" por parlamentares e governantes. O presidencialismo nada mais é do que a eleição de alguém que vai desempenhar o "papel" de rei por prazo fixo.

Voltando às mentiras de Estado, qualquer pessoa minimamente informada sabe das impropriedades cometidas por governos de diversos quilates. E, quanto mais poderoso ele for, mais indecências vai perpetrar. Tomemos o caso da CIA, o serviço secreto externo dos EUA. Mesmo um resumo bem resumido de seu histórico impressiona. A agência já foi acusada de participar de complôs para assassinar os presidentes Fidel Castro (Cuba), Patrice Lumumba (Congo), Rafael Trujillo (República Dominicana) e Ngo Dinh Diem (Vietnã do Sul), para citar apenas alguns dos mais ilustres. Relatório de um comitê do Senado dos EUA de 1975, o Church Report, não chega a corroborar todas essas acusações, mas deixa claro que a CIA conspirou para derrubar esses líderes e, na maioria dos casos, ao menos cogitou de assassiná-los. Os presidentes americanos, porém, sempre cuidaram de distanciar-se das embrulhadas da CIA.

Em 1976, Gerald Ford baixou uma ordem informal que proibia funcionários do governo dos EUA de participar direta ou indiretamente de assassinatos. Em 1981, Ronald Reagan oficializou a medida, transformando-a numa ordem executiva. Foi só George W. Bush quem a revogou após os atentados de 11 de setembro de 2001. Não devemos ser ingênuos. É bastante provável que algumas das maquinações da agência nos anos 80 e 90, incluindo assassinatos, tenham recebido o beneplácito de presidentes ou pelo menos de alguém muito próximo a eles, mas a ordem executiva lhes servia como uma espécie de habeas corpus preventivo. Se algum espião da CIA fosse flagrado envenenando a água de Fidel Castro, por exemplo, para efeitos públicos, o presidente sempre poderia dizer que o funcionário agira contra suas determinações.

Aonde eu quero chegar com essas considerações? É muito simples. A questão é que existem regras até mesmo para mentir. Para prosseguir, invoco o célebre paradoxo do mentiroso, atribuído ao profeta Epimênides, que, a despeito de ser ele próprio um cretense, teria afirmado "todos os cretenses são mentirosos". Se o que Epimênides diz é verdadeiro, então a frase é falseada, pois quem a profere é um cretense, que não poderia jamais dizer a verdade. Na outra hipótese, se o que ele afirma é falso, então nem todos os cretenses são mentirosos, falseando mais uma vez o enunciado original.

Na verdade, estamos diante de um problema da chamada classe dos paradoxos auto-referentes. O drama de Epimênides pode ser traduzido numa versão mais simples: "esta sentença é falsa". Se tomamos a frase como verdadeira, ela é falsa; se a tomamos como falsa, é verdadeira.

Quem se diverte propondo listas de bem-humorados paradoxos auto-referentes é o físico e filósofo norte-americano Douglas Hofstadter, autor de "Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid", vencedor do prêmio Pulitzer de 1980. Vale a pena conferir alguns de seus opúsculos: "Há dois erros nesta nesta frase"; "Quando você não está olhando para esta frase, ela está em espanhol"; "Esta frase não verbo"; "Esta frase tem repolho seis palavras"; "Se eu tivesse terminado esta frase,"

O que pode parecer uma simples brincadeira, também pode ser lido de forma mais dramática, chegando, no limite, a abalar os fundamentos da matemática. Foi partindo do paradoxo do mentiroso que o lógico austríaco Kurt Gödel (1906-1978) provou, em 1931, com o Teorema da Incompletude, que dentro de qualquer sistema lógico matemático existem proposições que não podem ser demonstradas ou refutadas com base nos axiomas internos do sistema. Assim, não existiriam garantias de que os axiomas básicos da aritmética --e portanto da matemática e da lógica-- não vão dar lugar a contradições. Essa prova é um dos grandes feitos matemáticos do século 20. Suas implicações são discutidas e causam polêmica até hoje.

Não me arrisco aqui a entrar em maiores detalhes sobre o Teorema da Incompletude. Tampouco chego, como o filósofo Ludwig Wittgenstein, a perguntar, comentando a prova de Gödel, "se isso agora significa que 2+2=4.001". Basta-me constatar que Bush, ao reinaugurar a era da mentira dolosa nas relações internacionais, abala, se não os fundamentos da lógica, pelo menos os alicerces da boa-fé no relacionamento entre países. Compromete também uma credibilidade que não era sua, mas dos EUA como Estado.

Não acredito que Bush seja um Gödel da política internacional, muito pelo contrário. Mas ao restabelecer a velha lógica segundo a qual fins justificam meios, Bush torna o mundo um lugar pior. Gostemos ou não, até para mentir precisamos de um pouco de método.

PS - Na semana que vem, parto para ansiadas férias, dando assim uma trégua ao leitor. Retomo a coluna na primeira quinta-feira de agosto.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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