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hélio schwartsman

 

14/08/2003 - 00h00

O sacerdote gay

Hoje analiso um tema em voga: igreja e homossexualismo. Na semana passada, a Igreja Episcopal dos EUA ordenou um bispo abertamente homossexual. A decisão pode levar a um cisma entre os anglicanos. Algumas semanas antes, o Vaticano havia divulgado um documento no qual se opõe a iniciativas de reconhecimento legal das uniões homossexuais que despertou a ira do movimento gay.

Se eu fosse sacana, lembraria também que, um pouco antes, a mesma Igreja Católica viu-se enredada num escândalo mundial envolvendo padres pedófilos. Mas, como não sou dado a implicâncias, paro por aqui.

A oposição entre ativistas gays e religiosos é esperada. Enquanto os primeiros operam sob uma lógica terrena, no limite hedonista, os outros pretendem atuar com vistas à transcendência. O diálogo entre os dois tende a ser um diálogo de surdos.

Com efeito, o movimento homossexual, como qualquer grupo que trabalha pela igualdade de direitos, acredita em mudança. E em mudança preferencialmente para melhor. A meta, por enquanto ainda distante, é chegar à plena igualdade de direitos entre homo e heterossexuais. Holanda e Bélgica já deram passos consistentes nesse sentido, ao estender a casais gays todos os benefícios e deveres do casamento civil.

Já os padres têm por dever de ofício preocupar-se com o que chamam de eterno. Para a igreja, é inconcebível imaginar que a moral possa ser condicionada. Se Deus, por meio das Escrituras, disse que o homossexualismo é um pecado, não somos nós, simples mortais, quem vamos desmentir o Altíssimo. A palavra do Homem, em princípio, não pode ser objeto de negociação.

E ninguém duvide de que os textos canônicos não são muito simpáticos ao homossexualismo. Embora algumas passagens do Antigo Testamento possam ser lidas como relativamente tolerantes (penso especialmente nos trechos que falam do amor entre Jônatas e Davi, que muitos entendem como carnal, descritos em 1 Samuel, 18 e em 2 Samuel, 1), a marca geral é a do opróbrio. Mas é no catecismo --não o de Carlos Zéfiro, mas o do Santo Padre-- que o Vaticano chama as coisas pelos nomes.

Lá, no catecismo 2.357, a igreja qualifica as relações homossexuais ("homosexualitas relationes" --é engraçadíssimo ler essas coisas em latim) como graves depravações ("graves depravationes") e contrárias à lei natural ("legi naturali contrarii"). O catecismo 2.358 afirma ainda que as tendências homossexuais são uma propensão objetivamente desordenada ("propensio objective inordinata"). Por fim, o catecismo 2.396, que elenca os pecados graves contra a castidade, menciona, pela ordem: "masturbatio, fornicatio, pronographia et homosexuales usus".

Essa não é uma exclusividade do catolicismo. Embora o conservadorismo de Roma em relação aos costumes sexuais seja "de jure" paradigmático, a tendência geral das religiões monoteístas pelo menos é a de condenar as variações menos comuns do ato sexual.

Na visão do Vaticano, o que está em jogo é muito mais do que direitos dos homossexuais, a camisinha ou a pílula. Como a moral é incondicionada, transigir num detalhe seria renunciar ao dogma. O que rui não é uma simples tradição, mas o próprio edifício lógico sobre o qual a igreja se assenta. Se o que Deus disse aos homens não precisa valer, é a própria igreja que não precisa existir.

Uma das poucas coisas de que não posso ser acusado é de amor pela religião --de puxa-saco de papa-hóstia, num português mais objetivo. Mas seria injusto julgar os padres sem compreender o alcance e a importância dos dogmas para uma igreja que pretende permanecer "in saecula saeculorum", isto é, "pelos séculos dos séculos", o que equivale mais ou menos a "para sempre".

É claro, porém, que as coisas não são assim tão claras, tão definidas. Compreender as razões do Vaticano não implica acatá-las. Estou entre os que acham que até a Igreja Católica pode evoluir e mudar suas posições, como já fez algumas vezes ao longo da história. Não podemos perder de vista a idéia de que tudo é interpretação. E não há nada que a casuística --arte que foi tão habilmente desenvolvida pelos jesuítas-- não possa resolver. No mais, a menos que algo me tenha escapado, nenhum livro canônico fala especificamente em camisinha, por exemplo.

Com o homossexualismo, reconheço, a coisa seria um pouco mais difícil. Não é necessário, porém, que o sexo entre pessoas do mesmo sexo seja declarado canônico amanhã. Mudanças desse calibre, quando ocorrem, dão-se no tempo da igreja, que não é de dias ou de anos, mas de séculos.

Se os gays estão certos ao lutar por seus direitos e os padres estão certos ao zelar pelo que consideram ser a verdade, torna-se lícito perguntar onde está a verdade. Incluo-me entre aqueles que não acreditam muito em verdades, mas isso não me impede de salomonicamente proclamar o que para mim é uma verdade.

Se o Vaticano está condenado a observar seus dogmas, essa verdade não vale para o resto da sociedade. A lógica do Estado não pode ser a lógica do catolicismo. O poder público opera no reino do terreno e não do eterno. Está mais para os gays do que para os padres. Projetos de legalizar a união de homossexuais para fins fiscais e sucessórios são tão legítimos quanto as leis que reconhecem o casamento tradicional. Do ponto de vista do Estado, não há razão objetiva para diferenciar entre os dois tipos de casal.

Na verdade, ao reconhecer a união gay, o Estado acaba sendo mais universal do que a Igreja Católica que leva até no nome a pretensão de ser universal ("católico" significa em grego "para todos", melhor traduzido como "universal"). Diferentemente de Roma, o poder público que admite o casamento homossexual não pretende impor a sua verdade a quem dela não deseja partilhar. E, até onde sei, nem mesmo a liberalérrima Holanda tem planos de tornar o homossexualismo obrigatório.

Estou plenamente convencido de muito poucas coisas, mas uma delas é a certeza de que a única forma de promover a convivência harmônica entre as pessoas é renunciando à pretensão de impor ao próximo as minhas verdades, os meus deuses e os meus demônios. Se há um erro essencial no catolicismo --e em outras religiões--, é o de pretender-se universal. Isso ele não é. Nem de fato de de direito.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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