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hélio schwartsman

 

25/09/2003 - 00h00

Domingo ilegal

Há algumas semanas, o apresentador de TV Gugu Liberato levou ao ar em seu "Domingo Legal" uma entrevista com supostos líderes do grupo criminoso PCC (Primeiro Comando da Capital), em que ameaçavam jornalistas, políticos e religiosos. Investigações policiais a respeito do episódio dão como quase certo que tudo não passou de uma farsa.

Os presumidos líderes do PCC não eram líderes e nem sequer pertenciam ao PCC. Teriam recebido dinheiro da produção do programa para encenar a entrevista. O apresentador, apanhado com a boca na botija, foi ao programa da companheira Hebe e, pedindo perdão, chegou às lágrimas. Não convenceu. Pelo menos não à Justiça, que, a pedido do Ministério Público, proibiu liminarmente que o "Domingo Legal" fosse ao ar na semana passada.

Pessoalmente, considero equivocada a decisão da Justiça. Não porque configure censura (o conteúdo do programa vetado não estava em questão) ou porque o Gugu não mereça, mas pelas simples razão de que os magistrados que apreciaram o caso decidiram transformar o que deveria ser uma medida cautelar --de resguardo de direitos-- numa punição. Em poucas palavras, eles inventaram coisas, isto é, legislaram, o que não é tarefa que lhes caiba, ao menos não no Direito burguês.

Vale notar ainda que escolheram uma punição não prevista em lei anterior e a aplicaram antes mesmo do julgamento do mérito da questão. Embora a proibição do Gugu possa ser vista como um tributo à estética e ao bom gosto, ela arranha o princípio da presunção de inocência, que está na base do Estado de Direito.

Não é, contudo, a questão jurídica do "affaire" Gugu que me interessa aqui, mas sim sua dimensão filosófica. O que é verdade e o que é mentira na TV? Podemos acreditar no que nos dizem apresentadores de programas como "Domingo Legal"?

Numa coluna na página 2 da Folha na semana passada, meu amigo Fernando Rodrigues levantou o problema do "infortenimento", ou seja, da mistura indiscriminada de informação com entretenimento na TV. Lembrou muito propriamente alguns outros casos em que notícia, opinião e divertimento se mesclam perigosamente. Por mais alguns pontos de audiência, há apresentadores dispostos a coisas que a mente humana mal ousa imaginar.

A questão é realmente difícil. Quando sentamos diante da TV para assistir a algum programa jornalístico, gostamos de acreditar que as notícias lidas pelos apresentadores são verdadeiras. Mas, por vezes, sentamos diante da mesma TV para assistir a um filme de terror. Neste caso, a nossa presunção é a de que tudo não passe de ficção. Não queremos crer que haja vampiros e bruxas circulando por aí. Se, nos programas de "infortenimento", apagam-se as fronteiras entre o real e o ficcional, já não sabemos se devemos ou não acreditar no que assistimos. E isso pode tornar-se um problema.

Como estou aqui mais para confundir do que para esclarecer, complico um pouco mais as coisas. Será que essa fronteira entre o real e o ficcional, entre "a verdade" e "a mentira", na TV ou fora dela, um dia existiu? Como jornalista, eu gostaria de acreditar que sim; como filósofo, não estou tão certo. E a honestidade intelectual exige que o filósofo prevaleça, pelo menos em parte, sobre o jornalista.

A objetividade é antes de mais nada uma ficção criada pelos filósofos. Como já escrevi aqui numa coluna antiga, o primeiro a empregar o termo "objetividade" foi, até onde pude traçar, o filósofo escolástico Duns Scott (1266-1308), designando mais ou menos exatamente o contrário do que significa hoje. Para Scott, "objetivo" é o nome que se dá à idéia ou à representação, em oposição a uma realidade que subsistiria por si mesma. Esse sentido prevaleceu até o século 17.

É a partir de Kant (sim, sempre ele) que o significado de "objetividade" começa a aproximar-se do atual. Para o filósofo de Königsberg, um dos sentidos de "objetividade" é o de designar as coisas independentemente das idéias que tenhamos sobre elas. Mas essa objetividade kantiana é, dentro do próprio universo kantiano, relativamente inútil.

Embora possamos conceber a existência de uma coisa em si mesma, isto é, independentemente de nosso espírito, só podemos abordá-la através de nossa sensibilidade e em nosso entendimento. Na prática, nossa humanidade nos condena a permanecer para sempre afastados da coisa em si. Temos de nos conformar com o fenômeno, que seria --e perdoem-me os deuses da filosofia por simplificar Kant em demasia-- uma espécie de interação entre a coisa em si e o sujeito, isto é, entre a realidade objetiva e nossa forma humana, subjetiva, de percebê-la.

Nesse contexto, não se pode esperar que o jornalismo, seja ele televisionado ou escrito, saia incólume. Se o sujeito contamina até mesmo a percepção e a intelecção de um objeto simples qualquer, o que não dizer dos complexos encadeamentos entre fatos e hipóteses causais que caracterizam qualquer história, do mais banal assalto na periferia, à Guerra de Tróia?

O leitor já deve ter percebido que me lancei numa armadilha. Estou a um passo de concluir que o jornalismo é a realização diária de uma impossibilidade teórica e, ao mesmo tempo, encontro-me moralmente impossibilitado de fazê-lo, pois é de um jornal que tiro o sustento de minha família. Para não deixar meus filhos sem seu leite, passo agora a tentar resgatar o jornalismo da torrente do relativismo em que inadvertidamente o atirava.

Brincadeiras à parte, mesmo reconhecendo que não existe uma verdade absoluta e admitindo que estamos limitados ao mundo fenomênico, ainda assim é forçoso aceitar que existe uma diferença entre a ficção pura e simples --o filme de terror e um relato tão honesto quanto possível de uma história qualquer-- a notícia. É nessa fresta, estreita e epistemologicamente precária, que o jornalismo tenta florescer.

No sentido forte, a objetividade é impossível. Se formos um pouco menos exigentes, porém, podemos nos contentar com uma espécie de jogo jornalístico, em que nós, leitores e telespectadores, fingimos esquecer por um instante as objeções filosóficas ao conceito de verdade e aceitamos tacitamente a palavra do jornalista de que ele tenta contar a história da melhor forma que pode.

Não é muito, mas pelo menos podemos ter, se não a certeza, pelo menos a confiança de que as matérias que lemos ou vemos em nosso jornal favorito não foram simplesmente inventadas por um repórter qualquer. (E o caso Jayson Blair, que abalou a credibilidade do vetusto "The New York Times", serve para lembrar que essa confiança é sempre e necessariamente débil).

Se quisermos resgatar a fronteira entre o ficcional e o noticioso, precisaremos nos contentar com um marco poroso e não-delimitado por um rio ou acidente geográfico claramente reconhecível, mas por uma linha algo artificial traçada no meio do deserto. Para saber com precisão se estamos de um lado ou de outro da divisa, precisamos do auxílio de instrumentos como o GPS. Em contextos bem-definidos, é relativamente simples carimbar uma história como ficcional ou noticiosa.

A maioria das pessoas não toma uma apresentação teatral como notícia, e apenas os mais paranóicos julgam todas as manchetes de todos os jornais pura invencionice. O problema dos programas de "infortenimento" é que eles nos lançam num contexto ambíguo ao qual não estamos acostumados. Neles, o dito tanto pode ser notícia como ficção. Pior um pouco, tudo é feito para que interpretemos como notícia o que não passa de teatro.

Essa confusão pode ser uma experiência interessante para psicólogos sociais e diretores de teatro, mas tende a ser daninha para as relações sociais e a mídia em geral. O risco é o de que, a ampliar-se a moda, as pessoas deixem de acreditar em tudo o que vêem na TV e, por extensão, lêem nos jornais. Apesar de alguns aspectos salutares que tal ceticismo possa trazer, sociedades organizadas precisam de que haja um mínimo de confiança entre os cidadãos. Um exemplo: quando o Ministério da Saúde, através da TV, convoca a população para uma campanha de vacinação, é preciso que as pessoas acreditem na mensagem divulgada e não a tomem por uma "pegadinha".

Embora eu reconheça, no plano teórico, o risco social da disseminação do "infortenimento", não creio que chegaremos a uma situação tão grave de descrença generalizada. O mais provável é que a crise de credibilidade atinja apenas o próprio Gugu e outros que agem como ele. É até possível que a população logo se acostume ao caráter ficcional desses programas e continue a assisti-los, mas agora como a novela que sempre foi e não como o noticiário que muitos tolamente supuseram que fosse.

A situação tem algo de paradoxal e irônico. Embora saibamos que as diferenças entre ficção e realidade são filosoficamente menores do que gostaríamos, precisamos, para que as coisas funcionem, deixar-nos convencer da ficção de que existe uma realidade objetiva ao nosso alcance. No fundo, a vida que tem mais de teatro do que nos acostumamos a acreditar.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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