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hélio schwartsman

 

09/10/2003 - 00h00

Sujeitinhos

Antes de meus filhos gêmeos, Ian e David, nascerem, havia prometido a mim mesmo que não me meteria com livros sobre o desenvolvimento de bebês nem nada parecido. Por um lado, eu não queria me tornar um pai aflito, daqueles que lêem descrições de doenças e imediatamente já identificam nos filhos os principais sintomas. Por outro, não queria transformar os meninos em ratinhos de laboratório, submetendo-os a experimentos físicos ou psicológicos.

Confesso que não resisti. Para tentar entender o que se passa em suas cabecinhas nesta fase tão fascinante --eles agora estão com um ano e sete meses--, pus-me a ler alguns textos do grande psicólogo suíço Jean Piaget. O que há de mais extraordinário em sua descrição de como se dá o desenvolvimento intelectual das crianças é que, apesar de tratar-se de uma obra científica datada já de várias décadas (seus primeiros achados foram publicados em 1921), ela permanece surpreendentemente atual, pelo menos no que diz respeito ao pensamento lógico-científico.

O que me levou a procurar Piaget foi perceber que os meninos não apenas não operam com as mesmas categorias lógicas que nós --o que é meio óbvio--, como ainda têm umas idéias meio esquisitas a respeito do princípio de identidade. Calma, eu me explico. Um de nossos passatempos preferidos é olhar os porta-retratos que ficam na estante da sala. Lá há umas nove ou dez fotos dos meninos, em diferentes fases, juntos, separados e também ao lado de outros membros da família. Os próprios garotos pedem para ser levados até as imagens e logo se põem a "narrá-las", dando os nomes de quem está nas fotos. Chamou-me a atenção o fato de que nenhum dos dois tinha dificuldades para reconhecer o irmão, mas ambos sempre vacilavam antes de identificar a si próprios. Muitas vezes, erravam, chamando a si mesmos pelo nome do irmão. (Nesse ponto, devo esclarecer ao leitor que os meninos são gêmeos dizigóticos e nem sequer parecem possuir parentesco: um é loiro; o outro, moreno).

Aprendi em Piaget --mais especificamente em "A Epistemologia Genética"-- que essa aparente confusãozinha banal esconde, na verdade, um acontecimento dramático. Neste intervalo de um para dois anos, ocorre, segundo Piaget, "uma espécie de revolução copérnicana que consiste em descentralizar as ações em relação ao próprio corpo, em considerar este como um objeto entre os demais num espaço que contém a todos". Em poucas palavras, eles estão se constituindo como sujeitos --ou deveria dizer sujeitinhos-- e dando seus primeiros passos no mundo das representações. Como o processo não se dá instantaneamente, as frequentes hesitações em relação a como classificar sua própria imagem. Uma vez que a idéia do "eu" enquanto objeto separado do mundo exterior mas nele presente ainda não se firmou de todo, acaba sendo mais simples "ver" na própria fotografia o irmão. (É curioso também notar que, diante do espelho, eles não têm dificuldades para reconhecer-se. Não encontrei ainda uma boa explicação para o fato, mas desconfio que tenha algo a ver com a simultaneidade).

Esse momento em que surge o sujeito está, evidentemente, revestido de uma importância especial. Com alguma licença poética, eu ousaria dizer que é o ponto em que a animalidade começa a ceder espaço à humanidade. A partir daqui, o indivíduo torna-se fonte de ações e de conhecimentos, que se entrecruzam num jogo de assimilações e equilibrações para produzir mais conhecimentos. Mobilizando sua abstração reflexiva, os sujeitinhos recém-constituídos provavelmente ainda irão longe na aventura do aprender.

É evidente que ainda é longuíssimo o caminho até que os meninos cheguem ao estágio das operações concretas (possam, aos 7, 8 anos, manejar conceitos matemáticos como o de transitividade) e maior ainda até que atinjam o nível das operações formais (sejam capazes, aos 11, 12 anos, de assenhorar-se da lógica). Mas é preciso reconhecer que eles já percorreram um bom pedaço, quando se considera que vieram ao mundo sem distinguir seu braço de um chocalho e dotados de capacidades ativas relativamente limitadas, como sugar, olhar, segurar.

Deixando Ian e David um pouco de lado e voltando a Piaget, devo dizer que a leitura de seus textos mais filosóficos (além de "A Epistemologia Genética" estou devorando "Sabedoria e Ilusões da Filosofia") foi uma grata surpresa. Esperava descrições mais ou menos relatoriais de experimentos, como nos escritos propriamente psicológicos, e encontrei um bem-amarrado diálogo entre uma teoria do conhecimento de base científica e alguns dos principais problemas da filosofia, como a causalidade, a representação.

Chamou-me especialmente a atenção uma passagem na qual Piaget afirma que algumas noções que apareceram apenas tardiamente na história das ciências são bastante primitivas na psicogênese, isto é, do ponto de vista do desenvolvimento das funções psíquicas. As coisas ficam --talvez-- mais claras com exemplos. Muito antes de conseguir lidar com o espaço euclidiano, crianças pensam em termos estruturas topológicas (ramo da geometria que estuda objetos deformados, isto é, figuras esmagadas, espremidas. torcidas etc.), um capítulo das matemáticas bem posterior ao de Euclides.

Na física o fenômeno se torna ainda mais interessante. Nós, adultos, talvez por termos sido "educados" no paradigma da mecânica clássica, temos dificuldades para absorver certos conceitos da física relativística, notadamente a noção da velocidade atuando como uma espécie de absoluto. Nas crianças mais jovens, porém, percebe-se uma intuição precoce da velocidade e totalmente desligada do conceito de duração. (O próprio Einstein se interessou pelo trabalho de Piaget no que concernia à intuição infantil de velocidade).

Não devemos --acho-- concluir que seria útil ensinar topologia e relatividade já na pré-escola, mas a observação de Piaget dá o que pensar. Num arroubo de ceticismo, poderíamos nos perguntar se a ciência em seu desenvolvimento histórico, isto é, se a formalização do pensamento, não nos faz percorrer caminhos mais longos "desnecessariamente". Será que nós poderíamos, se não estivéssemos tão presos ao raciocínio lógico, se pensássemos mais "como crianças", ter chegado à topologia e à relatividade antes dos séculos 19 e 20, respectivamente? Provavelmente, não.

Mas, se revoluções científicas se caracterizam pela adoção de noções que significam um recuo na escala da psicogênese, é lícito perguntar se a própria ciência por vezes não está mais próxima de nossa forma humana de perceber as coisas do que de realidades autônomas que independam de um sujeito.

Não tema o leitor porque eu não vou defender aqui nenhuma forma de idealismo radical. Até estou convencido de que existe um mundo externo real. Isso não diminui o entusiasmo do pai-coruja com a constatação de que seus meninos já se percebem, ainda que hesitantemente, como sujeitos. Pelo menos para o pai filósofo, educado na escola cartesiana do "penso, existo", a constituição do "eu" como sujeito capaz de conhecer é um instante maravilhoso --e engraçado também.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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