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hélio schwartsman

 

05/02/2004 - 00h00

O canibal cordial

Entre meus fetiches não está o por carne humana. Não posso, portanto, ser acusado de simpatia "corporativa" para com o técnico em computadores Armin Meiwes, 42, o canibal alemão, condenado na semana passada a oito anos e meio de reclusão por ter matado e comido o engenheiro Bernd-Jürgen Brandes, 43. Se o canibal de Rotemburgo, como ficou conhecido Meiwes, seguir tendo um bom comportamento na cadeia, poderá em princípio sair em liberdade condicional em meados de 2008.

Muita gente ficou chocada com a sentença, considerando-a branda demais. O técnico em computadores foi julgado culpado de homicídio simples, e não doloso como queria a promotoria. Respeito o sentimento de indignação, mas creio que a decisão do juiz Volker Mütze, da corte de Kassel, foi a acertada. Não sou um especialista em coisa nenhuma, muito menos na intricada legislação alemã, mas me parece evidente que matar uma pessoa que pretende morrer tem de ser um crime menos grave do que tirar a vida de alguém que não deseja perdê-la.

Bernd-Jürgen Brandes, como ficou claro nos autos de processo, estava inteiramente de acordo com a idéia de ser morto e comido por Meiwes. Deixou abundantes provas, inclusive um depoimento em vídeo, para facilitar a situação jurídica do parceiro. Não estou, é claro, afirmando que não há ilícito no caso do canibal alemão. Nem a defesa foi tão longe. Sua tese, que não foi acatada pela Justiça, era a de que Meiwes apenas auxiliou Brandes num suicídio, cabendo-lhe, portanto, a mesma pena do médico que realiza uma eutanásia (ilegal na Alemanha).

Acredito que o crime tenha sido um pouco maior. De algum modo, Meiwes contribuiu para que Brandes decidisse ser devorado. E é inegável que Brandes, assim como Meiwes, sofria de uma perturbação mental, ainda que não pareça ser o caso de declará-los inimputavelmente loucos. Já podemos entrever aí circunstâncias, como a indução ao suicídio, que nos permitem escapar à armadilha colocada pela defesa.

O que parece inquietar as pessoas é que Meiwes poderá "voltar à ativa" já em 2008. Esse de fato é um risco, mas a alternativa seria trancafiar o canibal pelo resto de sua vida natural, o que me parece um pouco exagerado. Meiwes talvez nem represente um perigo para a sociedade. Uma das testemunhas de defesa, Dirk Möller, asseverou à corte que também se prontificara a ser morto e digerido pelo técnico em computadores. Disse que já estava amarrado à cama e preparado para o abate quando mudou de idéia e pediu para ser solto. Meiwes o libertou sem pestanejar. Se essa história é verídica e não apenas uma peça de propaganda produzida pela defesa, estamos diante de um canibal cordial, um fetichista, como milhões de outros terráqueos, mas que leva às últimas conseqüências as fantasias que acorda com seus parceiros.

É aqui que o caso do canibal de Rotemburgo começa a ficar interessante. Meiwes e Brandes abandonaram o simbólico e abraçaram a literalidade. Primeiro, mantiveram relações sexuais. Depois, o canibal decepou o pênis do parceiro, fritou-o e ambos o degustaram juntos. Por fim, o técnico em computadores esperou que a vítima perdesse os sentidos, levou-a à sua mesa de açougueiro e a cortou em pedaços. As melhores partes, inclusive a cabeça, foram congeladas e consumidas nos meses que se seguiram. O restante foi enterrado no jardim. No total, Meiwes comeu 20 kg de carne do parceiro. Tudo foi filmado para posterior deleite.

Creio que a questão do canibalismo é o principal fator a fazer com que o caso desperte emoções fortes. Por alguma razão, nós, ocidentais, nutrimos profunda aversão a essa prática, admitindo-a apenas em casos extremos, como entre náufragos ou vítimas de acidentes aéreos. De um modo geral, porém, a antropofagia é uma velha companheira da humanidade. Em alguma de suas várias manifestações, ela existiu em todos os continentes habitados pelo homem. Há desde o canibalismo "light" de povos que consomem em rituais pequenas porções de seus parentes mortos, de forma a honrá-los, até a antropofagia mais pesada dos batak de Sumatra, por exemplo, dos quais se diz que vendiam carne humana em seus mercados. (Isso provavelmente é falso, mas, nestes casos, a versão é quase tão importante quanto o fato. Não raro, quem espalhava histórias horrivelmente exageradas de canibalismo a respeito de um povo eram indivíduos da própria população. Em determinados contextos, é muito melhor ser temido do que amado).

Seja como for, modernamente a antropofagia tem o dom de fascinar as pessoas ao mesmo tempo em que lhes inspira profundo terror. Creio que opera aqui uma mistura de compaixão pelo devorado com marcas ancestrais de rituais que definem nossa própria humanidade e idéias simbólicas que envolvem carne e sexualidade. Não é à toa que, em português, usamos o verbo "comer" para designar o ato sexual.

Nesse sentido, nossa tendência de nos sentirmos um pouco frustrados em relação à sentença "demasiadamente leve" dada ao canibal alemão indicaria uma certa intolerância para com nosso passado, para com os tempos em que a antropofagia era bem mais difundida entre os homens, em especial entre os que haviam abraçado a agricultura. É como se não nos perdoássemos por certas fantasias sexuais da infância e, cada vez que nos deparamos com ela na idade adulta, procuramos refreá-la com máximo rigor. Ao exigir punição mais rigorosa para Meiwes, embora não pareça haver motivos legais ou racionais para tal, queremos na verdade condenar nossa relação ainda não bem resolvida com esse curioso "blend" de antropofagia, sexo e entrega total.

Na outra ponta, a decisão exemplarmente técnica do tribunal alemão mostra que a temperança é capaz de vencer o impulso, resultando no que costumamos chamar de civilização.

PS - Na semana que vem, não poderei escrever a coluna, que retomo no dia 19.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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