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hélio schwartsman

 

01/04/2004 - 00h00

Paixão e preconceito 2, o retorno

Apesar de incréu, sou um sujeito relativamente educado e, assim, peço desculpas por não ter respondido à esmagadora maioria das mensagens que recebi por conta de meu texto da semana passada. É que eu simplesmente não fui capaz de lidar com o volume da correspondência --foram mais de 150 e-mails, muitos dos quais demandando respostas relativamente longas, com citações bibliográficas e argumentos sutis. Para ficar um pouco menos em falta com o leitor, proponho-me agora a responder no atacado o que não pude no varejo.

Comecemos pelas questões "ad hominem" que me foram dirigidas. Sim, sou judeu, admitindo que essa qualificação pode ser dada a alguém que não acredita em Deus. Tecnicamente, não chego a ser um ateu, mas apenas um agnóstico, porque não tenho como demonstrar a inexistência de um Ente supremo. Em termos rigorosamente lógicos, não se pode provar a inexistência de coisa alguma.

Embora eu abrace o judaísmo, tenho dúvidas de que o judaísmo me abrace, pois adoro um torresminho, não fiz bar-mitzvá nem submeti meus filhos a um cruento ritual primitivo com o qual eles poderão não concordar quando criarem juízo. Também já cometi alguns pecados especialmente graves entre judeus, como defender a liberdade de expressão para nazistas e condenar de modo veemente as políticas do governo de Israel contra os palestinos. Esperando que esses esclarecimentos pessoais já no limite da indiscrição satisfaçam à curiosidade do leitor, passo a questões mais substantivas. Vamos ao que eu não escrevi na semana passada.

Eu nunca afirmei que todos os cristãos são anti-semitas. Limitei-me a descrever muito sumariamente as condições históricas e políticas sob as quais surgiram os Evangelhos canônicos. Se quisermos, eu cheguei até muito perto de justificar o antijudaísmo daqueles escritos. No mundinho do monoteísmo, os evangelistas faziam parte de uma minoria (os cristãos) que precisava afirmar-se diante de uma maioria (os judeus). Teriam dificuldades para fixar sua identidade se equiparando ao grupo mais poderoso. Era natural, portanto, que procurassem afastar-se dos judeus. Acabaram, é claro, carregando a mão e lançaram as sementes do que alguns séculos mais tarde --quando os cristãos já eram maioria-- se tornaria o anti-semitismo teológico, que é a mãe de todos os anti-semitismos, inclusive o racial de Adolf Hitler. O antijudaísmo dos evangelistas, vale frisar, é incidental. Teve sua importância em termos históricos, mas não constitui um ponto central da doutrina cristã, de modo que é perfeitamente possível a qualquer um ser cristão --acreditar na mensagem central dos Evangelhos-- sem tornar-se por isso um rematado anti-semita.

Voltando ao antijudaísmo de alguns dos primeiros cristãos, a coisa funcionava um pouco como rachas de partidos de esquerda. Quem estava plenamente inteirado das disputas entre as inúmeras seitas que proliferavam na Israel do século 1º, não teria maiores dificuldades para entender os ataques que um grupo dirigia ao outro. Cristo desafiara saduceus e fariseus e, por isso, recebera o troco, através dos romanos, que tampouco viam com bons olhos pregadores subversivos. Quando se tira essa briga de seu contexto interjudaico e se a lança sem maiores explicações ao mundo, o "culpado" passa a ser "o judeu". ("Mutatis mutandis", seria como condenar genericamente "os franceses" pelo "assassinato" de Luís 16, ignorando todo o contexto revolucionário, no qual o rei foi guilhotinado por decisão de um determinado grupo --os jacobinos-- que tinha maioria na Assembléia. "Os franceses", assim "tout court", se dividiram entre os que apoiaram a degola e os que a rejeitaram).

Os Evangelhos, é claro, ainda estavam muito próximos do Jesus histórico para negar, por exemplo, o judaísmo do Cristo, mas quando, três séculos depois, chegamos a um João Crisóstomo, a clivagem já está completa: o judeu só é digno de ser destruído.

Também não escrevi que o judeu Paulo de Tarso foi o primeiro anti-semita. Disse apenas que tudo começou com ele. Aliás, quando afirmei que Paulo era um bom marqueteiro não pretendi de modo algum ofender o santo. Para mim pelo menos, não há nada de desabonador no marketing, uma profissão tão honrada quanto a de jornalista, pescador ou carpinteiro. Tampouco disse que Paulo estabeleceu ele mesmo o culto a Maria, o que só aconteceria lá pelo 3º ou 4º séculos, quando se consagra o título de "theotokos" (literalmente, "a que pariu Deus") dado à virgem. O que eu afirmei é que Paulo, ao revogar a antiga aliança e iniciar a catequese de gentios, possibilitou a distinção entre cristãos e judeus e trouxe para o cristianismo substratos religiosos que incluíam a adoração a deusas. Assim, "malgré soi", ele preparou e semeou o campo no qual mais tarde brotaria o ódio de cristãos por judeus e no qual surgiria o culto a Maria. A antiidolatria radical do judaísmo foi pelo menos esmaecida na nova aliança, que eliminou ou relegou várias determinações do Antigo Testamento, como as leis alimentares, a guarda do shabbat e a circuncisão. É bom recordar que, por conta do culto à virgem, protestantes acusam até hoje o Vaticano de idolatria.

Não chego aqui ao absurdo de afirmar que não esperava nenhuma reação dos leitores com a coluna da semana passada. Sempre que escrevo sobre religiões, afogo-me numa enxurrada de e-mails. Mas devo dizer que não esperava tantas contestações --recebi também alguns elogios-- pela simples razão de que meu texto era bem pouco opinativo. Fiz um resumo canhestro de interpretações históricas que julgava bem estabelecidas. Não fui além de autores já clássicos como Léon Poliakof ("A História do Anti-Semitismo") e Paul Johnson ("Uma História do Povo Judeu" e "História do Cristianismo). Mesmo um escritor de best-sellers como Gerald Messadié acata essa linha de interpretação em sua "História Geral do Anti-Semitismo". Até a comportada "Encyclopaedia Britannica" diz coisas muito semelhantes.

Outro ponto de meu escrito que se revelou especialmente polêmico foi o fato de eu ter criticado o filme de Mel Gibson antes mesmo de assisti-lo. Concordo que isso seria mesmo um despautério se eu tivesse arriscado comentários sobre a fotografia ou a montagem da película. Mas, se o leitor refletir um pouco, perceberá que eu não falei do filme, mas dos Evangelhos, que funcionam como um proto-roteiro ou sinopse do longa. E não é absurdo tecer juízos sobre roteiros ou sinopses. Aliás, é basicamente o que fazem produtores cinematográficos e diretores de televisão para decidir se vão ou não investir milhões de dólares num determinado projeto.

Quanto à última parte de meu texto, aquela em que disse que o mundo seria um lugar melhor sem religiões, devo dizer que se tratava de uma evidente provocação. O mundo não seria o mundo sem as religiões. Nem eu ignoro que a religiosidade é um dado antropológico, não sei se chega a ser um universal, como o tabu do incesto, mas está presente na esmagadora maioria dos grupamentos humanos. Isso não significa, é claro, que não possamos ou não devamos nos insurgir sempre que igrejas, Estados ou líderes, invocando Deus e a pátria, nos mandem destruir nossos semelhantes. E, infelizmente, a história das religiões é muito pródiga nessas conclamações.

PS - Na semana que vem, gozarei de folgas pascais, de modo que não escreverei a coluna. Em feriados, eu acredito.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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