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hélio schwartsman

 

20/05/2004 - 00h00

À sua imagem e semelhança

Às vezes, encontramos motivos para justificar nosso pessimismo: nunca devemos nos esquecer de que, mesmo quando julgamos que as coisas vão mal, elas podem piorar ainda mais. É bem esse o caso do ensino religioso no Estado do Rio de Janeiro. Desde que o casal Garotinho assumiu o controle do governo fluminense, as coisas não cessam de deteriorar. Como já comentei em coluna anterior, primeiro eles instauraram um concurso esdrúxulo para professores de religião que previa a demissão do docente que "perder a fé e tornar-se agnóstico ou ateu". Agora, anuncia-se que escolas do Rio ensinarão o criacionismo, sandice que também já abordei, mas que acreditava estar confinada aos EUA.

No fundo, o que o criacionismo pretende é elevar ao estatuto de ciência o relato bíblico da origem do mundo --fazer intervir um demiurgo. Nada contra o Gênesis, que está entre os meus livros preferidos das Escrituras. É claro que eu sou um pobre de um ateu que só aprecia a Bíblia por suas qualidades literárias. Mas creio que mesmo o mais pio dos religiosos está obrigado a interpretar com um certo cuidado a "ciência" contida nos textos sagrados. Acho complicado, por exemplo, acreditar que Deus tenha parado o Sol para que os israelitas pudessem massacrar os amorreus (Josué, 10, 12). Mesmo que eu não duvidasse da onipotência de Deus, pelo que sabemos hoje de física, a Terra não sobreviveria a uma parada em sua órbita solar, nem uma rapidinha.

De modo análogo, eu, mesmo sendo judeu, não devo esperar que os mares se abram para mim sempre que houver um egípcio em meu encalço no deserto, nem contar que pães se multiplicarão diante de toda horda de famintos. A própria excepcionalidade dos milagres --os textos religiosos os registram porque são raros-- confirma a existência de uma ordem natural, que pode vir a ser conhecida pelo homem, tornando-se assim o objeto da ciência.

O que estou tentando dizer é que ciência e religião não se misturam muito bem. Não dá para tentar explicar cientificamente os milagres descritos na Bíblia nem para ler as Escrituras esperando encontrar descrições cientificamente precisas de fenômenos naturais. Fé é fé e ciência é ciência.

E o problema do criacionismo é que o seu fim precípuo consiste justamente embolar o meio de campo. Procura colocar a idéia de que o homem surgiu da união inopinada de Adão e Eva em pé de igualdade com a noção de que o gênero humano é o resultado de milhões e milhões de anos de seleção natural, mais ou menos nos moldes da teoria proposta por Charles Darwin (1809-1882). Mesmo a suposta ciência do "design inteligente" não passa de tentativas mais ou menos canhestras de, desacreditando Darwin, abrir caminho para um Criador.

Não é preciso ser um especialista em pedagogia para perceber que é complicado um aluno de ensino fundamental (1ª a 8ª séries, isto é, de 7 a 14 anos) ouvir do professor de ciências que nossos parentes mais próximos em termos evolutivos são os primatas e, passado o recreio, aprender na aula de religião que o homem foi feito "à imagem e semelhança de Deus" no sexto dia da criação. Não seria de todo surpreendente se, diante de informações tão contraditórias colocadas num mesmo plano, o jovem estudante concluísse que Deus é um orangotango.

Não estou aqui afirmando que pais não possam ou não devam ensinar religião a seus filhos. Só acho que isso deve ser feito no espaço dos lares e das igrejas. A simples mudança geográfica já ajuda o aluno a assimilar que se trata de duas esferas diferentes de "verdades", cuja comunicação é precária quando não impossível. É mais ou menos como se tivéssemos o mundo do dia a dia ao lado de um mundo mais transcendente. Deus, Papai Noel e a bruxa podem existir, mas não se mostram o tempo todo como as pessoas e objetos do cotidiano.

Assim, qualquer um que não aposte na confusão das mentes das criancinhas há de concordar que o ideal é deixar o ensino religioso a cargo das famílias e sacerdotes e colocar a escola pública para cuidar de ciência, matemática, história etc. Um fundamentalista obstinado, porém, poderia perguntar por que a ciência deve ser considerada mais "real" do que a religião: por que ensinar nas escolas o princípio da não-contradição e não o princípio da obediência a Deus?

A resposta é muito simples: a escola pública em um país multirreligioso como o Brasil deve ser laica. No mais, a ciência é, se não mais "real" do que a religião, pelo menos mais universal. A menos que adotemos uma visão de mundo ultra-religiosa ou um ceticismo radical, podemos dizer que a ciência se baseia em fatos comprováveis, que independem de termos nascido católicos, protestantes, animistas, judeus ou ateus. Mesmo que abracemos uma posição mais forte e rejeitemos os princípios epistemológicos sobre os quais o edifício científico se ergue, ainda assim teríamos de concordar que o conjunto de saberes ao qual damos o nome de ciência vem nos possibilitando desenvolver uma série de tecnologias que funcionam. Se o forno de microondas que eu construo com base em meus conhecimentos de física não explode na minha cara e ainda aquece os alimentos que eu ponho em seu interior, algo na minha física deve estar certo. (Um cético ou um fundamentalista irredutíveis ainda poderiam contra-argumentar recorrendo a um gênio maligno ou a um Deus enganador, mas permito-me aqui deixar de lado essas objeções extremas).

Resta agora tentar entender por que o casal Garotinho está seguindo os piores passos da América e incentiva o fundamentalismo evangélico por estas bandas. Parte da culpa, o "pecado original", se o trocadilho é lícito, precisa ser atribuída à Constituição cidadã de 1988, que, querendo agradar aos padres, incorreu no grave erro de estabelecer o ensino religioso na rede oficial. Está tudo lá, no artigo 210, parágrafo 1, que proclama: "O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental". OK. A Constituição é boa, mas tem lá seus probleminhas. Esse é um deles.

É claro que esse dispositivo não autorizava os Garotinhos a lotear as almas dos alunos segundo sabe-se lá quais critérios e muito menos a ensinar jovens alunos que a mulher foi criada a partir de uma costela masculina. Aqui, temos razões para suspeitar que o atual secretário da Segurança Pública do Rio e sua mulher, a governadora do Estado, estejam se utilizando do sistema público de educação para conquistar a simpatia de lideranças religiosas que imaginam ser úteis para a consecução de suas aspirações políticas. Trata-se, sem dúvida, de um crime dos Garotinhos contra a garotada.

Com essa, o casal mais populista do Brasil coloca o país no mapa das nações cujas escolas oficiais "ensinam" que o mundo foi criado em seis dias. Não deixa de ser uma prova indireta de que Charles Darwin estava certo. O homem é o resultado da evolução. Ele descende de amebas. E muitos ainda hoje honram seus antepassados.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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