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hélio schwartsman

 

29/07/2004 - 00h00

Só para confundir...

O que é a vida afinal? De onde viemos? Para onde vamos? O Corinthians conseguirá escapar ao rebaixamento? --essas são algumas das questões fundamentais. Alguns leitores me recriminaram não ter explorado bem o conceito de vida na coluna passada, em que fiz algumas considerações sobre o aborto. Eles têm razão. Se pretendemos decidir sobre a vida, a lógica exigiria que, antes de mais nada, explicássemos como compreendemos o termo. Espertamente, eu havia fugido a essa discussão, mas agora, apanhado em flagrante, não vejo como furtar-me a ela, apesar de já ter abordado esse vívido tema num texto mais antigo.

A primeira observação que me parece pertinente é a de que, por mais embaraçoso que pareça, a ciência ainda não nos ofereceu uma boa definição de vida. A mais largamente utilizada é aquela que recorre a critérios fisiológicos, pelos quais o ser vivo é "um sistema capaz de desempenhar funções como alimentar-se, metabolizar, excretar, respirar, mover-se, crescer, reproduzir-se e responder a estímulos externos".

Não é difícil ver os limites dessa enunciação. Se a tomarmos estritamente, estaremos excluindo vários seres que deveríamos, pelo menos por analogia, classificar como vivos. Afinal, são diversas as bactérias que não respiram, obtendo energia por outros processos como a fermentação ou a oxidação do enxofre. Se, por outro lado, interpretarmos a definição frouxamente, isto é, sem exigir a realização da totalidade de suas funções, corremos o risco, talvez mais grave, de atribuir vida ao inanimado. Com efeito, um carro, por exemplo, só não cresce nem se reproduz, mas realiza todas as demais atividades. Um vírus de computador, embora não respire, teria até a capacidade de crescer e reproduzir-se.

É claro que a fisiologia não é a única arma disponível no arsenal dos cientistas. Podemos tentar circunscrever a vida em termos metabólicos. Aí, um sistema vivo é, segundo o verbete "life" da "Encyclopaedia Britannica", o "objeto com limite definido capaz de trocar materiais com o meio sem alterar, por algum tempo, suas propriedades originais". Certos esporos podem permanecer dormentes por milhares de anos, num desafio à definição. Numa leitura rigorosa, a chama de uma vela também poderia ser considerada viva. Outra opção, bem ao gosto moderno, é apelar para o DNA/RNA, mas, de novo, aparecem dificuldades. O agente infeccioso causador de encefalopatias espongiformes, como o mal da vaca louca, é presumivelmente o príon, uma simples proteína auto-replicável, sem nenhum material genético tradicional.

Na tentativa de driblar esses estorvos, cientistas cunharam outras definições, como a genética e até a termodinâmica. O problema é que elas começam a distanciar-se tanto do objeto ao qual deveriam referir-se que se tornam menos úteis. Seria estranho um médico mencionar a entropia do Universo ao preencher um atestado de óbito.

Para complicar um pouco mais as coisas, podemos especular sobre o que é a vida no homem. Um indivíduo é composto por pouco mais de 75 trilhões de células. Cada uma delas nasce, "vive" e morre. A rigor, perdemos vários milhares de células por minuto, milhões por dia, o que não basta para nos tornar mortos. Mesmo quando morremos "de verdade", não morremos "por igual". Alguns grupos de células seguem vivas por mais tempo do que outros. E o fato de um pedacinho do baço estar vivo não basta para tornar o morto vivo. Tendemos a considerar que as células "que importam" são as do cérebro, mais especificamente aquelas responsáveis pelas chamadas funções superiores, que incluem memórias, personalidade etc. Contudo, vale lembrar que o critério hoje amplamente aceito de morte encefálica vem sofrendo contestação, como já escrevi num artigo do ano passado.

Como não poderia deixar de ser, a precariedade de nossos conceitos de vida e morte tem implicações filosóficas. Se temos dificuldades até para definir o que está vivo, temo-las também para estabelecer uma diferença consistente entre seres humanos e não-humanos. Já se pretendeu que o homem era o único animal racional. Hoje, sabemos que vários outros organismos, notadamente os mamíferos, também exibem comportamentos racionais e até algum grau de consciência. Prova-o o fato de que são capazes de aprender com a experiência, o que pressupõe alguma racionalidade.

Se levarmos até as últimas conseqüências a impossibilidade de traçar uma distinção forte entre a vida humana e a não-humana, nós nos veremos compelidos a concordar com o arrazoado do filósofo Peter Singer, que defende, além do aborto e da eutanásia, a eugenia e o infanticídio em caso de doenças incapacitantes, como mostrou a última edição do caderno Mais! da Folha. (Também já perpetrei um comentário sobre as idéias pouco ortodoxas do bioeticista australiano). Com efeito, se sacrificamos sem maiores pudores animais nascidos com anomalias e chamamos a isso ato "humanitário", por que nossa tendência é pôr na cadeia quem faz o mesmo com humanos? Como justificar a diferença?

Tranqülize-se, porém, o leitor. Embora eu não disponha de argumentos para rejeitar o raciocínio de Singer, que me parece filosoficamente consistente, não tenho a intenção de colocar o infanticídio entre os direitos inalienáveis dos pais. Minha objeção, porém, é mais de ordem política do que teórica. A menos que queiramos promover o caos, precisamos estabelecer algumas regras para o aborto, a eutanásia e procedimentos análogos, assim como necessitamos de leis de trânsito. E seria preciso muita insensatez para defender que um Parlamento atual aprove a Lei do Infanticídio e o Estatuto da Eugenia.

Voltando a Singer, ele propõe que os limites sejam dados pelo grau de consciência de si que cada ser tem. Assim, a vida humana valeria mais que a de uma vaca, que não é dada a reflexões filosóficas. Uma criança teria preferência sobre um recém-nascido. Um embrião de poucas semanas seria mais sacrificável do que um feto no final da gravidez. Não sei se a noção de consciência de si não é metafísica demais para tornar-se um critério decisório aplicável, mas como princípio norteador ela parece fazer sentido. É claro que, como tudo, ela pode dar lugar a dificuldades imprevistas: um bêbado tem menos consciência de si do que alguém sóbrio. Isso seria razão para alguém embriagado ter menor prioridade num salvamento, por exemplo?

O fato é que, a menos que façamos intervir um Deus legislador, não existe moral absoluta. Toda ética é social e historicamente determinada, o que significa que os limites para as condutas devem ser fixados pela lei positiva. Como não tenho bola de cristal, não descarto que, no futuro, o infanticídio de seres com doenças graves, nos moldes sugeridos por Singer, seja o padrão civilizado. Há 60 anos, poucos apostariam que o aborto seria legalizado na maioria dos países do Primeiro Mundo. Hoje, contudo, acho que são nulas as condições políticas até para a liberal Holanda aprovar um dispositivo dessa natureza, que, de resto, está longe de ser uma questão premente para a humanidade. Essa é uma discussão por ora prudentemente restrita ao círculo dos debates intelectuais.

A verdade, pelo menos para mim, é que, apesar de não sabermos bem o que é vida e morte, cabe apenas a nós fixar as suas fronteiras, na lei e na filosofia. Paradoxalmente, essa nossa capacidade de exercer a autonomia não deixa de ser algo que nos distingue de vacas e embriões.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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