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hélio schwartsman

 

19/08/2004 - 00h00

O Conselho e os covardes

Retornando de alguns dias à beira-mar, ofereço ao leitor uma reflexão sobre o famigerado Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) da perspectiva de um covarde, pelego e charlatão, isto é, eu mesmo --a crer nas definições do presidente da República, dos sindicatos da categoria e na minha própria, já que não tenho diploma de jornalista.

É de fato instigante o projeto do governo de criar um Conselho para "orientar e disciplinar" as atividades da imprensa. Nada tenho contra a orientação e a disciplina, mas rejeito peremptoriamente a idéia de um conselho de jornalismo. Sei que minha posição me sujeita, entre entre outras coisas, a epítetos nada edificantes como os listados acima, mas a proposta urdida nas hostes palacianas é ligeiramente autoritária, se é que essas duas palavras não geram uma contradição quando colocadas juntas.

Eu me explico. Vejo na iniciativa um embaraço ao pleno exercício das liberdades civis, mas, ao contrário de alguns de meus colegas, não creio de modo algum que a democracia brasileira esteja em risco. Para os que vêem perigo, a tentativa de criar o CFJ deve ser analisada ao lado de outros projetos de caráter despótico do governo petista, como assumir o comando sobre a produção audiovisual, proibir funcionários públicos de falar com jornalistas ou promover a "flexibilização" dos sigilos bancário e fiscal de empresas. Oponho-me, é claro, em maior ou menor grau, a todas essas medidas, mas não creio que o conjunto chegue a configurar uma investida antidemocrática. Todas essas bobagens ainda precisam passar pelo crivo do Legislativo e do Judiciário. O primeiro pode até piorar as coisas, mas acredito que ameaças mais consistentes às liberdades públicas seriam barradas pelo Supremo Tribunal Federal, que certamente seria provocado a manifestar-se.

No fundo, o que temos é apenas um governo tentando exercer seu apetite natural por mais poder e menos controles. Espero sinceramente que quebre a cara em seus propósitos, mas acho precipitado vê-los desde já como rupturas institucionais. É tudo um jogo de poder, no qual a própria reação indignada de setores da sociedade e da imprensa serve para fazer abortar as iniciativas ou pelo menos para amainar seu caráter autoritário.

Colocado o quadro geral, acho que podemos passar ao mérito da proposta de criação do CFJ e seus filhotinhos, os Conselhos Regionais de Jornalismo (CRJs). O modelo almejado, que não é apenas fruto dos desejos do governo, mas também da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), o órgão sindical da categoria, é algo bastante próximo ao da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Ambos têm poder de cassar as credenciais de um profissional que tenha sido condenado por seus tribunais de ética, impedindo-o de exercer a atividade temporária ou definitivamente. O raciocínio a justificar a idéia é perigosamente sedutor: se até médicos e advogados se submetem à disciplina de uma associação de classe, que visa, entre outras coisas, a proteger a sociedade de maus profissionais, por que diabos os jornalistas recusam os Conselhos?

Aqui é preciso prosseguir por partes. Antes de mais nada, devemos nos perguntar no que a atividade jornalística difere da de médicos e advogados. Comecemos pelo escopo. Não há muita dúvida sobre quem seja um médico, um advogado ou um engenheiro. Mas quem é jornalista? Um economista que cometa diariamente uma coluna no jornal faz ou não jus ao título? Estaria ou não subordinado ao CFJ? E o médico que esporadicamente arrisca um artigo numa página de opinião? Como distinguiremos jornalistas de não-jornalistas? Haverá uma fórmula, segundo a qual quem escrever, digamos, mais de 27 vezes por ano torna-se jornalista, submetendo-se às regras dos Conselhos, ou simplesmente proibiremos não-jornalistas de estampar seus textos em órgãos de imprensa?

(Em nome da honestidade, devo aqui abrir um parêntese. Como já antecipei, não sou uma parte totalmente desinteressada nessa questão. Uma das metas não-declaradas da Fenaj com a criação do CFJ é impedir que pessoas não formadas em jornalismo, isto é, charlatães, como é o meu caso, trabalhem na imprensa. Já tratei desse tema numa coluna antiga, pelo que me desobrigo de voltar ao assunto aqui).

Como o perspicaz leitor já deve ter percebido, minha tese é que somos (ou podemos vir a ser) todos jornalistas, o que torna estúpido criar uma lei "ad hoc". As normas e responsabilidades relativas à publicação de textos devem ser as mesmas para toda a sociedade. Reforço meu argumento lembrando que a liberdade de expressão figura na Constituição como garantia fundamental e na condição de cláusula pétrea, o que não ocorre com o direito de realizar cirurgias ou construir pontes.

E a liberdade de expressão, para não tornar-se um princípio ocioso, precisa ser forte o suficiente para garantir que as pessoas possam escrever justamente o que pareça aético, infame e que desagrade à maioria, isto é, coisas que poderiam facilmente ser "denunciadas" aos Conselhos e resultar na cassação dos direitos jornalísticos do provocador. E, por falar nisso, como ficaria um jornalista suspenso definitivamente? Ele perderia para sempre o direito de manifestar seus pensamentos, no que configuraria clara ofensa à Constituição?

Não pretendo com essas minhas considerações negar que a imprensa livre é um perigo. Não são poucas as reputações que foram destruídas por má-fé, incompetência ou simples descuido. O caso em torno do ex-deputado federal Ibsen Pinheiro e a revista "Veja" é um bom exemplo. Mas há outros, envolvendo praticamente todos os veículos de comunicação.

Muitos de meus colegas insistem que os instrumentos para punir abusos "a posteriori" já existem. É inegável que pessoas que se sintam ofendidas por reportagens e colunas podem processar jornalistas e jornais civil e penalmente. Não creio, contudo, que esse seja o melhor argumento contra a criação dos Conselhos. Se é verdade que a honra não tem preço, também é verdade que nenhuma reparação ulterior compensará o prejuízo subjetivo do ofendido. Isso nos força a centrar a defesa da plena liberdade de imprensa na convicção, a meu ver fundamentada, de que, no mundo imperfeito em que vivemos, é preferível ter uma imprensa livre, ainda que sujeita a erro, a um jornalismo dócil, que não questione nem conteste os poderes estabelecidos e o "statu quo".

A título de ilustração, lembro o ocaso da mídia norte-americana, que, entorpecida pela tragédia do 11 de Setembro, passou a aceitar quase tudo em nome do combate ao terrorismo. O resultado, pelo qual agora os principais órgãos já fazem o "mea culpa", foi uma cobertura acrítica e acomodada das razões que levaram o presidente George W. Bush a invadir o Iraque. Em sua credulidade ideologicamente motivada, jornalistas experientes engoliram mentiras que normalmente desmontariam apenas porque vinham revestidas do selo governamental e da idéia de que a segurança é um valor quase absoluto.

Meios de comunicação livres, contudo, não são importantes apenas por serem capazes de exercer algum controle sobre os governantes. É na imprensa livre compreendida em sua acepção mais ampla que se materializa a liberdade de expressão, valor fundamental para o bom desenvolvimento do pensamento. Ao contrário do que alguns filósofos e romancistas possam ter sugerido, ninguém pensa sozinho. Tanto as mais brilhantes idéias que já ocorreram à humanidade quanto as mais fenomenais bobagens por ela concebidas são em maior ou menor grau o resultado de um diálogo de idéias e conceitos travado entre seres humanos.

Limitar a liberdade de expressão e, portanto, de transmissão de idéias entre o maior número possível de pessoas, é de algum modo limitar a capacidade dos indivíduo de pensar. Só quem não pensa pode cair numa armadilha dessas.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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