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hélio schwartsman

 

02/09/2004 - 00h00

Maratona esportiva

Se formos analisar a coisa racionalmente, o esporte é a materialização da insânia. Não faz nenhum sentido que algumas pessoas dediquem suas vidas a tentar superar, às vezes por um mísero milésimo de segundo, alguém que nunca viram num percurso que liga nada a lugar nenhum.

Mais estranho é imaginar que dois grupos de adultos supostamente racionais, expondo-se a moderado risco físico e atuando segundo regras absolutamente arbitrárias, se ponha a perseguir um objeto esférico com a meta anódina de fazê-lo cruzar uma linha desenhada no chão.

Muito pior é o papel do torcedor que, sem nem ao menos participar da brincadeira --sim, admitamos que é tudo uma grande brincadeira--, irrita-se com os erros cometidos pelo bando de marmanjos ao qual resolveu dedicar sua afeição e renuncia até mesmo a apreciar a partida com um mínimo de eqüidade, conceito tido como valor positivo pela esmagadora maioria das éticas antigas e contemporâneas.

Se tudo isso já parece ridículo, descalabro ainda maior é perder alguns segundos que seja debruçado sobre o quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos. Aqui, o exercício já é de metainsensatez, pois agrupam-se delírios tão díspares quanto ver quem atira mais longe um pedaço de pau e quem dá mais piruetas antes de estatelar-se sobre uma piscina para daí tentar inferir qual é o melhor país do mundo para viver ou qual é o sistema econômico mais eficiente.

A essa altura, o leitor deve estar-me tomando por um daqueles clássicos sedentários militantes mal-humorados, que, como Parmênides, abomina o movimento e, dando vazão ao mais excessivo esnobismo, despreza tudo o que o "vulgo" gosta e louva o que a todos pareça aborrecido ou até abominável. Não é bem assim. Embora eu ainda não esteja pronto para correr uma maratona olímpica, cumpro religiosamente meus 10 ou 12 quilômetros de corrida diária. Mesmo que não tenha acordado de madrugada para assistir às emocionantes oitavas-de-final de peteca, que alguns insistem em chamar de badminton, acompanhei as provas de algumas modalidades nestas Olimpíadas. Apesar de rejeitar arroubos de nacionalismo, até torci para o Brasil quando achei que os atletas mereciam.

Minha intenção ao iniciar esta coluna postulando o despropósito da ação esportiva foi tentar provocar uma sensação de estranhamento com atividades que nos são muito familiares, principalmente após duas semanas de Jogos Olímpicos, a fim de reinterpretá-las num outro plano. Aqui, como já fiz numa coluna sobre a
Copa de 2002, busco o auxílio de um pensador extraordinário já quase esquecido, Johan Huizinga (1872-1945).

Para esse historiador holandês, a idéia de jogo é central para a civilização. Em seu "Homo Ludens", de 1938, Huizinga afirma que todas as atividades humanas, incluindo filosofia, guerra, arte, leis e linguagem, podem ser vistas como o resultado de um jogo, ou, para usarmos a terminologia técnica, "sub specie ludi" (a título de brincadeira).

A escrita alfabética surgiu porque um escriba com gosto por trocadilhos infames resolveu brincar com sons, significados e símbolos, como já procurei mostrar numa crônica antiga.

A filosofia, se quisermos, não é muito mais do que um grande jogo de conceitos. Mesmo as guerras, particularmente as guerras antigas, ocorrem segundo certas regras que lembram jogos e não excluem gestos de cavalheirismo. O Direito, então, é pura encenação. Na Inglaterra advogados e juízes ainda usam perucas (por aqui só sobrou a toga), numa evidência incontestável de que o mundo das leis tem muito de teatro.

Até as democracias representativas contemporâneas são, se quisermos, um grande espetáculo em que substituímos os reis que tinham cargos hereditários e vitalícios por "príncipes" eleitos a prazo fixo. Muito da pompa e do cerimonial foram transferidos para a Presidência das Repúblicas, que conserva poderes tipicamente monárquicos como o de conceder "graça" a prisioneiros.

Voltando a Huizinga, o autor define jogo como "atividade ou ocupação voluntária executada dentro de certos limites fixos de tempo e espaço, de acordo com regras livremente aceitas, mas absolutamente restritivas, que tenha seu fim em si mesma e que se faça acompanhar de um sentimento de tensão, alegria e da consciência de que ela difere da vida ordinária".

Aqui as coisas começam a ficar mais estranhas ainda. Para um jogo ser jogo, ele antes de mais nada exige que seus participantes aceitem graves limitações à sua liberdade, numa espécie de servidão voluntária. Quem joga futebol, por exemplo, exceto pelo goleiro, renuncia a tocar a bola com a mão, ainda que grandes craques como Maradona tenham feito célebres gols irregulares, após enganar o juiz em espetáculo paralelo que confirma o caráter lúdico da atividade. Em latim, as palavras "ludus" (jogo) e "illusio" (ilusão) partilham a mesma raiz.

De modo análogo, convencionou-se que ginastas não podem pisar em falso, que maratonistas não podem tomar um táxi para chegar mais depressa a seu destino e que nenhum atleta pode valer-se de aditivos químicos para melhorar sua performance. De novo aqui, o que se tem visto é a ilusão, o desenvolvimento de novas drogas que escapem à detecção pelos testes normais, numa verdadeira olimpíada farmacêutica paralela.

Se me fosse dado decidir os destinos do mundo --e felizmente não é--, a questão do doping receberia um outro tratamento. Não vejo sentido, por exemplo, em proibir que atletas se utilizem de substâncias como maconha, álcool e heroína, que tendem a prejudicar e não melhorar seu desempenho. Se um ciclista bêbado consegue vencer seus concorrentes sóbrios, é porque ele é muito melhor que seus adversários, merecendo a medalha. O Comitê Olímpico veta esses produtos numa canhestra tentativa de associar esporte a saúde, uma atitude que tem muito mais de moral do que de lógica.

Quanto às drogas que de fato aprimoram a performance do atleta, é preciso algum cuidado. Creio que o comitê vem pecando pelo exagero. Será que é tão errado assim que um jogador franzino tome durante um certo tempo e sob supervisão médica esteróides que possam fazê-lo ganhar massa muscular eliminando uma desvantagem que pode ser resultado de uma alimentação deficiente na infância, quem sabe fruto da miséria? Será que alguém que tenha tomado remédios para combater uma anemia severa ou um quadro de caquexia não deveria ter, depois de recuperado, o direito de competir nos Jogos Olímpicos?

Não é esse, contudo, o ponto central deste artigo. Retornemos à definição de jogo de Huizinga. Para o historiador, além das regras restritivas, o lúdico precisa encerrar as sensações de "tensão" e "alegria" e a "consciência de que [essa atividade] difere da vida ordinária". É nessa passagem que se abre caminho para a emoção, o elemento que impossibilita a abordagem puramente racional de uma partida de não importa qual esporte e que fatalmente o transformaria em algo despropositado. O sentido surge justamente quando desprezamos por alguns instantes a razão e saltamos um bocadinho para fora da "vida ordinária", seja como participantes, seja como torcedores.

Para além do caráter catártico da experiência, o espírito de brincadeira que, ao menos para os grandes atletas, ainda é alma do esporte, foi fundamental na experiência humana. Huizinga identifica três funções no jogo: a agonística (competição), a lúdica (exuberância, ilusão) e a diagógica (passatempo, ócio). Olhando apenas com os olhos da razão, veríamos aí uma imensa perda de tempo que ainda traz o risco de nos fazer esquecer assuntos "sérios". Se, por outro lado, lançarmos um olhar mais benigno e tolerante, podemos concluir, com o historiador, que o jogo, a brincadeira tiveram o mérito nada desprezível de ajudar a produzir a linguagem, as leis, a ciência, a filosofia, signos que costumamos tomar como indicativos da civilização.

Seria um pouco exagerado afirmar que a civilização é fruto do lançamento de um dardo ou de uma cortada do Giba, mas não há como deixar de reparar que a trégua olímpica observada pelos antigos gregos foi um eloquente indício de civilidade.

No fundo o que Huizinga, Jogos Olímpicos e a própria aventura humana nos mostram é que o mundo, se não é propriamente uma piada, não pode ser levado muito a sério --ou não teríamos chegado até aqui.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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