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hélio schwartsman

 

30/09/2004 - 00h00

Semelhante contra semelhante

Acho que irritei alguns homeopatas com minha coluna da semana passada, em que equiparei esse ramo da medicina a xamanismos e pajelanças. É verdade que não resisti à piada, mas quem se dispuser a ler o texto com atenção verá que eu reconheci que a homeopatia tem efeitos terapêuticos, o que é mais do que seus adversários costumam fazer.

Vou ainda mais longe e afirmo que Samuel Hahnemann (1755-1843), o criador da homeopatia, era um homem à frente de seu tempo e que deve ter sido responsável pelo salvamento de muitas vidas. Numa época em que as práticas médicas mais correntes consistiam de sangrias e enemas, e a farmacologia abusava de medicamentos à base de mercúrio e outras substâncias tóxicas, não há muita dúvida de que as prescrições homeopáticas se afiguravam como alternativas menos letais. Vale recordar que a maioria das doenças que acometem o homem passa sozinha. Mesmo hoje, com um amplo arsenal terapêutico mais ou menos eficaz à disposição, freqüentemente os médicos se limitam a acompanhar o desenvolvimento natural da patologia, só intervindo caso a moléstia provoque complicações inusuais.

O "similia similibus curantur" (coisas semelhantes são curadas por semelhantes) postulado por Hahnemann levou à descoberta, em 1796, de que o quinino era um medicamento eficaz contra a malária, pois, quando ministrado a pessoas saudáveis, provocava uma sintomatologia semelhante à dos que padecem de infecção por protozoários do gênero Plasmodium. É claro que, de uma perspectiva epistemologicamente moderna, o sucesso no caso do quinino não autoriza de modo nenhum a transformar o "similia similibus curantur" num princípio heurístico universal. Quem tentar controlar uma hipertensão ministrando drogas que aumentem a pressão de pessoas sadias provavelmente só conseguirá piorar a condição clínica do paciente.

O outro grande dogma da homeopatia instituído por Hahnemann é o de que a eficácia dos medicamentos aumenta com a diluição. Doses grandes agravariam a doença, já as pequenas a curariam. A essa doutrina, exposta em seu "Organon der rationellen Heilkunst" (Órganon da Medicina Racional, de 1810), ele chamou de "potenciação da dinamização". De novo, é difícil modernamente compreender o que há de racional na diminuição das doses. É justamente por conta da aplicação desse princípio que a homeopatia é vista com desconfiança hoje pela ciência normal.

Medicamentos homeopáticos passam por tantas e sucessivas diluições que, ao final do processo, já não sobraram moléculas do ingrediente original. Daí a dificuldade para explicar sua atuação em bases físico-químicas, as mais utilizadas na medicina alopática.

Ficou célebre o caso da memória da água, protagonizado pelo imunologista francês Jacques Benveniste. Em 1988, a revista científica britânica "Nature" trouxe um artigo de Benveniste em que ele reclamava ter encontrado a base farmacológica da homeopatia, que chamou de "memória da água". Segundo o pesquisador, a água era capaz de "se lembrar" do que fora dissolvido nela, apesar das intermináveis diluições. Só que a "Nature" tinha feito um acordo com Benveniste, pelo qual, após a publicação, uma equipe da revista examinaria seu laboratório.

Os investigadores apontados foram o físico John Maddox, editor-chefe da revista, Walter Stewart, químico orgânico especialista em fraudes científicas, e o mágico James Randi, líder de uma associação de céticos. Sob a vigilância do trio, os franceses foram desafiados a repetir a experiência e não conseguiram. Em seguida, a "Nature" publicou um artigo devastador ridicularizando Benveniste, que perdeu seu até então prestigiado laboratório e tornou-se um "outsider" da ciência.

Como o leitor sagaz deve ter percebido, o fato de não sermos capazes de dizer como uma coisa opera não significa que ela não funcione. Quantos de nós sabem descrever com precisão a teoria que faz com que o forno de microondas esquente os alimentos? No entanto, basta que metamos a comida lá dentro e apertemos o botão para que o engenho trabalhe.

A medicina, seja ela alopática ou homeopática, não é exatamente uma ciência. Ela é antes uma arte. Está mais interessada em resultados do que em teorias. Utilizamos com sucesso várias drogas alopáticas mesmo sem saber com exatidão por quais mecanismos ela atua. Sabemos apenas que ela age e isso nos basta --e principalmente ao doente.

E a homeopatia também funciona, como demonstram vários estudos com abordagem estatística. Aqui, para sermos justos com a alopatia é preciso dizer que muitos especialistas na chamada medicina baseada em evidências apontam problemas metodológicos nos trabalhos pró-homeopatia. É também um fato que os sucessos apresentados pela homeopatia são em geral menos veementes do que os demonstrados pelas boas drogas alopáticas.

A rigor existe uma explicação alopática para os resultados da homeopatia. Antes de prosseguir, peço licença para cometer uma inconfidência. Eu mesmo sou um usuário da homeopatia e posso atestar que ela funciona, embora não do jeito que os homeopatas gostariam. Eu me explico. Éons atrás, sujeito de mente aberta e de espírito científico que sou, resolvi experimentar um tratamento homeopático. É claro que não funcionou, mas os frascos contendo os medicamentos ficaram sobre a minha estante.

Hoje, sempre que um de meus filhos gêmeos, agora com dois anos e meio, vem se queixar de dores sem importância, em geral após chocar-se com um objeto ou levar uma mordidela da cachorra, pingo-lhes no local uma gota do preparado --um tal de "bromatum"-- e o incômodo desaparece como num passe de mágica. As mentes de crianças e adultos não são, afinal, tão diferentes assim.

Isso é o que os cientistas chamam de efeito placebo, pelo qual o simples fato de alguém achar que está sendo tratado já contribui, às vezes decisivamente, para a sua recuperação. É esse fenômeno que explica, no plano científico, como rezas, pajelanças e várias terapias alternativas baseadas em contra-sensos podem apresentar resultados positivos, se o paciente acredita nelas e quando a doença tem forte fundo emocional, como asma, alergias etc. Não por acaso, essa é a área em que a homeopatia tende a ter melhor performance em estudos controlados.

A pergunta que fica é se é possível que a homeopatia tenha efeitos farmacodinâmicos reais e nós não saibamos disso. Sim, possível é.

Recentemente, laboratórios não-comprometidos com a homeopatia se depararam com um fenômeno intrigante, no qual sucessivas diluições de determinados compostos, ao invés do afastamento das moléculas, levou à aglomeração e, depois, à formação de grandes agregados. Isso evidentemente ainda não basta para dar uma base farmacológica à homeopatia, mas indica que precisamos estudar mais química. Quem sabe um dia tenhamos uma explicação um pouco melhor para resultados de experimentos com preparados homeopáticos, embora eu não acredite muito nessa possibilidade.

Em termos práticos, não há dúvidas de que os próximos grandes avanços no campo da medicina virão da alopatia. As bases epistemológicas da homeopatia são frágeis e seus resultados, embora não inócuos, menos bons do que aqueles obtidos com drogas que contenham princípios ativos e "in vivo" produzam metabólitos. É verdade, por certo, que a indústria farmacêutica nos impinge uma série de produtos alopáticos de efeitos discutíveis, que pouco ou nada acrescentam ao arsenal já existente. Mas apenas cogitar de tratar uma sepse ou uma pneumonia bilateral com produtos homeopáticos e não com antibióticos poderia configurar um caso de omissão de socorro.

É por essa e outras razões que defendi que a rede pública se centre na medicina alopática. A linha de frente dos hospitais e postos oficiais está mais esburacada do que um queijo Emmenthal. Consultas estão levando meses para ser marcadas. É preciso resolver esses gargalos com máxima urgência, pois pessoas podem estar morrendo porque um médico não as vê a tempo. Num futuro que espero não seja remoto, talvez seja o caso de oferecer também tratamento homeopático, certamente útil em algumas patologias. E os médicos alopatas podem e devem aprender algumas lições com seus colegas homeopatas, como fazer consultas e anamneses um pouco mais longas, prestando a devida atenção às queixas dos doentes. O tempo "perdido" com as lamúrias tende a ser economicamente recompensado com uma suspeita diagnóstica mais precisa, o que resulta na diminuição de pedidos de exames, muitas vezes caros e com resultados ambíguos.

No dia em que o Estado for rico, se é que isso vai ocorrer, por que não oferecer também o serviço de xamãs e carpideiras? Apesar de todos os avanços da medicina, em muitos casos ela é totalmente impotente. É quando o conforto psíquico do paciente, que depende de suas crenças e formação cultural, deve tornar-se a prioridade.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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