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hélio schwartsman

 

11/11/2004 - 00h00

O fenômeno Bush

Minha coluna anterior devia estar bastante mal-escrita, a julgar pelo número que recebi de mensagens me criticando por coisas que nunca afirmei. Pretendo hoje reparar alguns dos mal-entendidos. Comecemos pelo que eu jamais disse. Eu nunca declarei que os EUA não eram uma democracia. Tampouco asseverei que o colégio eleitoral e George W. Bush são incompatíveis com o Estado de Direito.

O que eu disse, e repito, é que a robusta democracia norte-americana, que funciona ininterruptamente há mais de 200 anos --com pequenos percalços, é bem verdade, mas funciona--, ficaria ainda mais firme com algumas reformas, como a adoção do princípio de que os votos dos cidadãos para presidente deveriam ter todos o mesmo peso.

Eu também nunca disse que apenas caipiras que andam armados e acreditam na luta do bem contra o mal votaram em George W. Bush. Ao fazer essa descrição algo literária, mobilizei estereótipos, condição necessária para fazer toda sociologia. Meu intento era apenas mostrar que a América que acabou por dar a vitória a Bush, representada principalmente por religiosos e habitantes de Estados mais conservadores, é diferente daquela que preferiu o senador John Kerry, cujo tipo ideal é o morador de classe média e instruído de alguma grande cidade cosmopolita, como Nova York, Boston, Chicago, Los Angeles ou San Francisco. É evidente, porém, que tanto Bush como Kerry receberam votos em todos os cantos do país. Em Utah, o mais republicano dos Estados, Kerry obteve 27% dos sufrágios. Já Bush, ficou com 37% no mais democrata deles, o Massachusetts. (Em Washington DC, que não é um Estado, mas tem três votos no colégio eleitoral, Kerry venceu por 90% a 9%).

Também se deve frisar que, a crer na pesquisa de boca-de-urna da CNN, 22% dos americanos declararam ter votando levando em consideração principalmente a questão moral, rubrica que influiu mais do que a economia (20%) e o terrorismo (19%). Desse exército de moralistas, que com freqüência se abstém de votar, 80% optaram por Bush --mais do que o suficiente para desequilibrar eleições apertadas, como têm sido as presidenciais norte-americanas. Não é, portanto, absurdo dizer que foram os conservadores religiosos que garantiram a reeleição.

Fizeram-no, é claro, muito mal-informados. Pesquisa recente da Universidade de Maryland mostrou que 70% dos eleitores de Bush acreditam haver provas incontestáveis de que Saddam Hussein operava junto com a rede terrorista Al Qaeda. Não é só. Cerca de 30% julgam que foram encontradas armas de destruição em massa no Iraque.

Por fim, considero injustas as acusações que me fizeram de ser antiamericano. Muito pelo contrário, é por admirar demais esse país e o seu povo --ou ao menos parte dele-- que dedico preciosas horas de meu tempo a ler e informar-me sobre os EUA, sua história e suas idiossincrasias.

Admito, é verdade, que tenho um problema com George W. Bush. Talvez nem tanto com ele, mas com o que ele representa. Se viesse a conhecê-lo pessoalmente, é provável que até simpatizasse com a figura, que dizem ser afável e espontânea. Estou convicto de que o presidente é parcialmente sincero em suas crenças, ou não teria conseguido convencer 59.459.765 pessoas a elegê-lo. Já até cometi uma crônica a respeito de Bush e o auto-engano, de modo que não me detenho mais nesse ponto.

O que me incomoda na recondução do presidente --para além da possibilidade de ele iniciar novas guerras (que considero remota, tendo em vista o atoleiro iraquiano)--, é o fato de que ela conspira contra o avanço da autonomia humana. Com a confirmação de Bush, agora com um claro mandato para investir contra liberdades civis, direitos de homossexuais, pesquisas científicas etc., o centro do mundo --e, por extensão, o próprio planeta-- fica mais longe do ideal de alcançar a maior liberdade possível. Com a reeleição, os norte-americanos estão dizendo é que o país mais forte tem direito de submeter as nações menos poderosas, que as pessoas não são livres para fazer sexo consensual com quem bem entendam, que a mulher --e, portanto, o ser humano-- não pode dispor do próprio corpo e que cientistas e educadores devem satisfações à Igreja na hora de decidir sobre o que vão pesquisar e ensinar. Esse é mais ou menos um bom resumo de tudo o que eu abomino na nova América. Num mundo razoável, se alguém não gosta de pornografia, por exemplo, tem todo o direito de não comprá-la, hipótese em que ainda economiza uns trocados. Mas por que tentar impedir os outros de ver revistas de mulher pelada? --acho difícil explicar um tal comportamento sem recurso a distúrbios de personalidade.

A consagração do presidente no último dia 2, mostra que Bush, infelizmente, não era uma anomalia histórica. A América conservadora, é claro, sempre existiu, mas nem sempre comparecia às urnas. Depois do 11 de Setembro e de uma campanha republicana bem-feita, que logrou convencer o eleitorado religioso a votar, não sobram dúvidas: os conservadores são hoje a maioria, ainda que relativamente estreita. No sufrágio popular, Bush ficou com 51% do eleitorado contra 48% de Kerry --uma prova de que nem tudo está perdido na América.

Numa visão otimista, a guinada conservadora nos EUA não chega a alterar os rumos da humanidade. No horizonte de longo prazo, a tendência histórica tem sido a de caminhar para a liberalização. Apenas 200 anos atrás, a escravidão era a regra em grande parte do mundo. Hoje, se ainda não conseguimos eliminar essa chaga, ao menos fomos capazes de torná-la condenável em todos os códigos morais conhecidos. Interpretação análoga vale para a pena de morte, que vem sendo progressivamente abolida no mundo civilizado. É inegável também que as pessoas vêm cada vez mais se apoderando do direito de dispor de seus próprios corpos, seja através do direito ao aborto, respeitado na maior parte dos países de Primeiro Mundo, à eutanásia, que começa a ganhar reconhecimento, ou ao suicídio, que vai deixando de ser considerado crime.

O diabo é que, da perspectiva de nossas vidas individuais, essa tendência de longo prazo é quase uma abstração. Entristece-me pensar que meus filhos dificilmente viverão num mundo melhor, mais livre e mais justo do que o que eu conheci.

Antes que me tomem uma viúva das utopias socialistas libertárias, esclareço que estou convencido de que existe uma natureza humana, senão imutável, ao menos turrona. Ela é capaz tanto de maldades atrozes como de atos de generosidade comoventes. Não podemos moldá-la a nosso gosto, como ousaram propor comunistas de diversos calibres, mas isso não significa que, na média, o homem não seja em absoluto sensível aos apelos da razão. Sociedades podem ser organizadas --e melhoradas-- através de leis, educação e políticas públicas. As pessoas podem ser convencidas de que é possível viver mais harmonicamente, se todos abrirem mão de meter-se em determinadas esferas da vida de seus pares.

É claro que sempre haverá fanáticos que tentarão controlar tudo, mas cabe à democracia isolar esses grupos mais exaltados dando-lhes um palanque, mas frustrando, pelo voto da maioria, que tende a ser moderada, sua perspectiva de chegar ao poder. Nos EUA, infelizmente, esse frágil equilíbrio foi rompido com a eleição e a reeleição de Bush. Devemos esperar mais alguns retrocessos no campo de liberdades e dos direitos civis, mas nada que ameace o movimento de longo prazo da humanidade em direção a uma sociedade menos selvagem.

Ainda que depois de George W. venha Jeb Bush, o irmão do presidente, atualmente governador da Flórida, é pouco provável que a América se torne uma teocracia cristã no horizonte de nossas vidas. Os conservadores pensantes --os que mandam-- sabem muito bem que essa seria uma perigosa armadilha. A melhor receita para levar a superpotência à decadência é ensinar a todas as crianças de lá que as leis de Darwin não se aplicam e que o mundo foi criado por Deus em seis dias, há exatos 5.765 anos. No espaço de apenas uma geração, a América teria perdido sua ciência e, com ela, o seu poderio.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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