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hélio schwartsman

 

24/03/2005 - 00h00

Do direito de morrer

A pedido de leitores, volto a comentar o caso Schiavo, que, nos últimos dias, se tornou o principal assunto da mídia norte-americana e grande destaque da mundial. Para quem não acompanhou essa folhetinesca história, que mistura questões como direito de morrer, separação dos poderes, relações familiares, tribunais, dinheiro, política e religião, faço a seguir um resumo em que permito ser quase minucioso.

Contrariando os cânones do bom jornalismo, sigo a ordem cronológica e não a da notícia mais "quente". Em 1990, a então bela e jovem Terri Schiavo, com 26 anos, sofreu uma parada cardíaca. Ela foi reanimada, mas seu cérebro fora privado de oxigenação por vários minutos. A hipóxia teve conseqüências devastadoras. Terri ficou num estado que os médicos qualificam como "vegetativo persistente". É menos do que um coma. Ela é capaz de sobreviver sem a ajuda de respiradores. Depende, porém, de uma sonda para ser alimentada e receber a hidratação adequada.

A principal característica de sua condição é que não há traço de vida relacional, ou seja, ela não tem consciência de nada que se passa à sua volta. A literatura registra alguns casos de recuperação de pacientes que estiveram em estado vegetativo persistente. As lesões sofridas por Terri, porém, são de tal ordem e extensão que a medicina em seu estado atual não lhe oferece nenhuma esperança.

Como o episódio se deu nos EUA, mais especificamente na Flórida, o marido de Terri, Michael, processou --e ganhou-- o ginecologista da mulher por não ter diagnosticado a hipocaliemia (baixo nível de potássio no sangue) que teria sido responsável por sua parada cardíaca. Em novembro de 1992, os Schiavo receberam uma indenização de US$ 1 milhão.

Em 1998, teria início uma outra batalha jurídica. Michael diz que, como já perdera as esperanças na recuperação de Terri e como a mulher lhe havia confidenciado que não desejaria permanecer viva artificialmente, quis retirar o tubo que a alimenta. Os pais da moça, os Schindler, porém, não concordaram, de modo que o marido recorreu à Justiça.

Os Schindler, é claro, contam uma história um pouco diferente. Afirmam que Michael só queria ficar com o dinheiro. Pouco depois da indenização, começou a mostrar-se pão-duro em relação às despesas do tratamento e logo se amasiou com uma outra mulher, Jodi Centonze, com quem hoje tem dois filhos.

Por mais confusa que a situação pareça, em termos legais ela é relativamente clara. Qualquer um tem o direito de recusar tratamento, o que inclui retirar a sonda nasogástrica que despeja um líqüido nutritivo no estômago de quem não tem condições de deglutir.

Na hipótese de o paciente não poder manifestar sua vontade e não ter deixado disposições por escrito, cabe a um familiar tomar as todas as decisões relativas ao fim da vida. Sendo o paciente casado, quem responde é o cônjuge --e nenhum outro parente.

O dispositivo tem uma lógica. Em princípio, escolhemos com quem nos casamos, o que não vale para outros parentescos, sorteados pelo destino. Assim, em fevereiro de 2000, um juiz do Estado da Flórida acatou os pareceres médicos de que Terri não tem chances de recuperação e aceitou as provas segundo as quais a paciente manifestara o desejo de não ser mantida viva artificialmente, autorizando a retirada do tubo.

Vale observar que descontinuações de tratamento ocorrem todos os dias em todos os países do mundo. O caso Schiavo nem teria ido para as cortes se os Schindler não se opusessem veementemente à decisão de Michael.

Bem, uma vez que chegou aos tribunais, de lá não saiu. A sonda de Terri foi retirada pela primeira vez em abril de 2001. Dois dias depois, os Schindler conseguiram uma liminar para que fosse recolocada. Seguiram-se dois anos e meio de apelações na Justiça estadual e federal. Michael foi vencendo um a um todos os desafios legais que seus sogros interpunham. Em outubro de 2003, o marido venceu o que parecia ser o último recurso jurídico cabível. Só que Terri já se havia tornado uma bandeira política para grupos auto-intitulados pró-vida.

Esse lobby, cada vez mais poderoso, conseguiu com que o Legislativo da Flórida aprovasse uma lei tão absolutamente casuísta que foi apelidada de "Terri's Law". Ela dava ao governador Jeb Bush, irmão do presidente, um prazo de 15 dias para suspender decisões da Justiça e mandar religar aparelhos de suporte de vida em casos como o de Terri, o que foi feito.

Foram mais 11 meses de batalhas judiciais até que Michael conseguisse, em setembro de 2004, que a Suprema Corte da Flórida anulasse a excrescência jurídica que era a "Terri's Law". Os Schindler tentaram a Suprema Corte federal, que não aceitou rever o caso. Assim, o juiz do caso determinou mais uma vez a retirada do tubo. Marcou-a para o dia 18 de março (sexta-feira passada), o que foi feito. Privada de alimentação e água, Terri deve morrer num intervalo de dez dias a duas semanas.

De novo, o lobby conservador se articulou, dessa vez em escala federal, e conseguiu com que o Senado e a Câmara aprovassem --em pleno fim de semana!-- uma nova e grotesca lei dando especificamente aos "pais de Terri Marie Schiavo" o direito de voltar a uma corte federal para tentar reverter a decisão da Justiça estadual. O artifício legal, que ditadores de republiquetas de Terceiro Mundo teriam pudor em utilizar, foi imediatamente sancionado por George W. Bush.

Os Schindler entraram com petição em corte federal da Flórida pedindo a reinserção do tubo, que foi negada na última terça. Ontem, foi recusada nova liminar impetrada num tribunal federal de apelações. O casal diz que voltará à Suprema Corte federal, se necessário.

Há aqui vários aspectos a comentar. Na minha primeira coluna sobre o assunto, destaquei o problema do conflito entre os Poderes. Tenho pouco a acrescentar agora. Embora cabeças de juiz sejam relativamente imprevisíveis, o mais provável é que o Judiciário negue as súplicas dos Schindler. Trata-se de matéria já julgada sem vícios processuais que justificariam um novo julgamento. No mais, não é preciso ser um especialista em sistemas de governo para perceber que a lei dos Schindler, ao permitir que o Legislativo interfira sobre decisões já tomadas pela Justiça, ela rompe o equilíbrio entre os Poderes. Fere também o pacto federativo, ao derrubar a autonomia do Estado da Flórida para questões de sua exclusiva alçada. Basicamente, o que os senadores e deputados fizeram foi se meter numa briga de família que já estava resolvida pela esfera competente. É mais um precedente ruim para a democracia americana. É claro que os Schindler merecem uma palavra de simpatia. Se eu estivesse no lugar deles, seria o primeiro a querer pôr um fim à triste situação de Terri, mas compreendo que eles possam ter outros sentimentos. Simpatias à parte, a única esfera legítima para resolver a questão é o Judiciário. E ele já deu a sua palavra.

Politicamente, a investida só foi possível porque veio ancorada na vitória eleitoral de George W. Bush, que se deu em grande medida baseada em palavras de ordem como "direito à vida". É curioso que, nesse caso, a direita norte-americana, que sempre defendeu a autonomia e o poder dos Estados, deu uma guinada formidável ao ver-se forçada a advogar pela intervenção federal.

Passemos agora ao mérito da questão de fundo, que é a eutanásia. Vem crescendo no Ocidente a tendência de deixar aos pacientes o direito de decidir como querem morrer. Oficialmente, apenas a Holanda e a Bélgica aprovaram leis de eutanásia. Isso não significa que não sejam aplicadas, em suas modalidades menos ativas, todos os dias em todos os hospitais do mundo.

Quando o médico deixa de reanimar um paciente terminal que sofreu parada cardíaca, ele pratica o que os especialistas em bioética chamam de ortotanásia (deixar que a doença siga seu curso natural). Embora num país como o Brasil esse profissional pudesse em princípio ser indiciado pelo crime de omissão de socorro, essa não é absolutamente a regra. Admite-se não envidar todos os esforços para manter vivo alguém que esteja sofrendo e não tenha prognóstico favorável. Pacientes nessas condições ganham, nas UTIs brasileiras, a alcunha SPP (se parar, parou). No mais, decisões dessa natureza são quase sempre tomadas em comum acordo com o paciente e/ou com sua família. E nenhuma lei democrática pode obrigar o paciente capaz a seguir tratamento médico que não deseje. (Exceções são algumas poucas doenças infecciosas altamente contagiosas).

Outro caso freqüente de eutanásia aceita é aquele em que o médico administra drogas com vistas a aliviar os sintomas do paciente, mas que acabam por antecipar sua morte. Um dos coquetéis analgésico-sedativos preferidos pelos médicos leva o apelido de M1. Tipicamente, é o doente de câncer que precisa de doses cada vez maiores de remédios para suportar dores. A uma dada altura, as drogas acabam precipitando uma parada respiratória que se revela fatal. Ora, uma defesa intransigente do respeito à vida, como querem alguns, exigiria deixar o paciente sucumbir a dores excruciantes. O médico que tomasse tal atitude seria muito mais um torturador sádico do que um santo.

A verdade é que, à medida que vamos conhecendo um pouco mais sobre vida e morte e multiplicamos nossas possibilidades de intervir sobre esses processos, mais frágeis se mostram as noções primitivas que moldaram nossas "certezas morais". A idéia de que a vida se encerra quando o coração cessa de bater já não se sustenta. De modo análogo, é impossível, diante do que sabemos de embriologia, afirmar que a vida surge no exato momento em que o espermatozóide fecunda o óvulo.

É claro que a vida é um valor a defender, não porque seja um presente de Deus ou porque o direito natural assim o determine, mas pela simples razão de que a esmagadora maioria de nós a temos como nosso bem mais precioso. Essa, no fundo, é mais uma razão para que o indivíduo volte a ser senhor de sua própria morte, como ocorria mais ou menos até o século 19. (Recomendo aqui a leitura do interessantíssimo "História da Morte no Ocidente", de Philippe Ariès). Fazê-lo no contexto cada vez mais médico que a morte vem assumindo, exige dar ao cidadão o pleno direito de dizer: "parem com tudo; chegou a minha hora". Não estamos com isso autorizando nenhuma eugenia nazista nem nada parecido. Estamos apenas afirmando o óbvio: cada um é livre para dispor do próprio corpo.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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