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hélio schwartsman

 

31/03/2005 - 00h00

A vida como ela é

O leitor é freqüentemente mais esperto do que nós, colunistas, julgamos. Achei que passaria despercebido o fato de, em minha última (Do direito de morrer), eu não ter dito se julgava ou não "justo" que a decisão sobre a vida e a morte de Terri Schiavo coubesse ao marido e não aos pais. Limitei-me a afirmar que era isso o que determinava a legislação do Estado da Flórida. Vários leitores --especialmente os contrários ao desligamento do tubo que alimenta a paciente-- cobraram-me um posicionamento, ao qual eu me havia furtado não por tucanismo, mas por uma razão muito precisa: a definição da justiça é um dos mais antigos e difíceis problemas filosóficos; como não dispunha de espaço para desenvolver minimamente a questão, optei por passar ao largo dela.

De fato, no plano institucional, é irrelevante o que cada um de nós possa achar justo ou injusto. Numa democracia, conflitos como o que opunha o marido de Terri aos pais da moça devem ser solucionados pelo Judiciário, que forma sua decisão com base nas leis, na jurisprudência e na doutrina. Apesar de "justiça" e "Judiciário" partilharem a mesma raiz --"jus", que, em latim, significa "direito", "lei"-- eles não são absolutamente idênticos. O que é legal nem sempre é justo, e muitas vezes o justo é ilegal. São abundantes os exemplos de leis injustas. A própria situação de Terri Schiavo é, para muitos, um caso flagrante de iniqüidade das normas.

(Aproveito o mote para um pequeno parêntese. O conflito entre lei humana, o "nómos", e a justiça, a "díkê", constitui a própria matéria-prima da tragédia grega. Antígona, por exemplo, se vê dividida entre respeitar o édito de seu tio, que a proibia de dar sepultura ao irmão Polinices, e cumprir seu dever sagrado de honrar as obrigações familiares. Nesse contexto, o caso Schiavo guarda algo de trágico).

Como o sagaz leitor já deve ter percebido o problema da justiça reside em encontrar critérios universais para defini-la. A lei como já vimos é insuficiente. Se admitimos a hipótese de que podem haver leis injustas (e basta uma espiadela nos Legislativos de todo o mundo para sair convicto de que leis e salsichas têm muito em comum: o povo não deve descobrir como são feitas), precisamos encontrar um princípio de outra ordem.

Aqui os religiosos saem em vantagem. Eles sempre podem apresentar seu Deus como fonte de toda justiça. Essa boa notícia para os homens de fé não resolve, porém, o problema prático das democracias, cujo Estado precisa ser laico. Não estou com isso afirmando que as democracias devam rejeitar a religião ou qualquer outra coisa. Elas apenas precisam equacionar o problema da administração da Justiça (uso a inicial maiúscula para indicar que me refiro aqui à instituição e não ao conceito) sem recorrer a nenhuma espécie de Deus, ou teriam de definir também qual é o intérprete privilegiado de Seus desígnios, isto é, se o Estado deve ser católico, muçulmano, batista, luterano, budista, umbandista etc., o que o tornaria necessariamente menos democrático. Ora, cabe ao poder público atender às necessidades terrenas de seus cidadãos, deixando a salvação de suas almas (se é que as há) para a esfera privada.

Também podemos tratar a justiça como um problema de linguagem. Constatamos que o mundo está repleto de injustiças (seu estado natural) e, a partir daí, criamos, por contraste, a idéia de justiça, na qual passamos a acreditar. Receio que a solução não seja tão simples. É claro que não acredito em direito natural desde o dia em que me contaram que Papai Noel não existe, mas é forçoso reconhecer que nossa sede de justiça é intensa demais para ser explicada por um mero desencontro lingüístico. Se não devemos apelar a Deus, recorramos a seu preposto mais próximo: Charles Darwin.

Provocações à parte, é possível afirmar que a seleção natural favoreceu o surgimento em nossa espécie do clamor por justiça, à medida que ele pode ser útil para fixar estratégias de cooperação com nossos semelhantes. Diferenciar pessoas de bem (que não me causam injustiças) de trapaceiros é fundamental para eu escolher aqueles a quem posso me associar. E isso não vale só para humanos. Num interessante trabalho publicado em setembro de 2003, pesquisadores da Universidade Emory, em Atlanta, mostraram que macacos capuchinhos (Cebus apella) também ficam indignados quando sofrem injustiças ("Nature", 425, 297-299). O amor pela justiça não é apenas um universal humano, mas uma característica partilhada com alguns de nossos primos macacos e quem sabe até com outros mamíferos.

De algum modo, a evolução nos equipou com um sentido de justiça que não apenas nos habilita a detectar ações injustas como ainda torna emocionalmente carregadas nossas reações ao que tomamos como iniqüidades. A fonte da justiça estaria assim dentro de nós mesmos. Bastaria que julgássemos com nossos corações para reconhecer imediatamente o que é justo e o que não é.

De novo, eu receio que a solução não seja tão simples. A gentil mãe-natureza nos deu o equipamento para protestar contra injustiças, mas se esqueceu de calibrá-lo, tornando-o inútil para converter-se num critério objetivo universal. Vale lembrar que nosso sentido de justiça não foi concebido para que sejamos justos, mas é uma ferramenta que nos auxilia a sobreviver e passar nossos genes adiante. Assim, não chegam a ser surpreendentes os resultados de um outro trabalho feito pelas mesmas primatologistas de Emory publicado neste ano na "Proceedings of the Royal Society B". Elas mostraram que chimpanzés capazes de revoltar-se contra a injustiça a toleram bem quando ela beneficia seus parentes ou amigos. Não é por outra razão que deputados não vêem nada de errado em contratar mulheres e filhos para cargos de assessoria, o que boa parte dos contribuintes julga um pequeno escândalo. Não é por outra razão que vemos como pênalti qualquer tropeção que o artilheiro de nosso time dê na área do adversário e pedimos cartão amarelo sempre que o atacante do outro clube "se joga" sobre os pés de nossos defensores. Somos naturalmente péssimos juízes.

É claro que podemos nos esforçar para ser objetivos. Mas isso quase nunca é o suficiente, daí que tivemos de buscar o auxílio de leis escritas e proceder ao divórcio entre legal e justo. Legisladores tentam, é verdade, criar normas que lhes pareçam justas, mas sempre surgirão casos que deitarão por terra a intenção original.

Feitas essas ponderações sobre a justiça, voltemos ao caso Schiavo. Foi justo ter dado ao marido e não aos pais o poder de decidir sobre seu futuro? Se eu fosse bancar o Salomão e dar vazão aos meus impulsos pessoais de justiça, diria que não. Uma vez que Terri não tem consciência de nada que se passa à sua volta, sendo-lhe indiferente permanecer ou não respirando, e como, para seus pais, é tão importante mantê-la viva, deixaria o tubo no lugar. Essa, contudo, não é a pergunta certa.

As cortes de Justiça dos EUA só deram indiretamente ao marido o direito de decidir o destino da mulher. O que se estabeleceu nos tribunais é que Terri, antes do incidente que a deixou com graves seqüelas neurológicas, havia manifestado mais de uma vez o desejo de não ser mantida viva artificialmente. Os pais não conseguiram anular essa prova, donde se presume que ela tenha de fato dito isso --o que, convenhamos, é um desejo perfeitamente natural. No fundo, o que a Justiça norte-americana está fazendo é implementar a vontade de Terri. Como o caso passou por 19 cortes diferentes, acho que podemos considerar que a matéria foi extensamente debatida e que as devidas cautelas foram observadas.

A argumentação de que Terri só teria afirmado não desejar ser mantida viva artificialmente porque se encontrava no auge da forma física e jamais considerara a questão seriamente é estúpida. Acatá-la equivaleria a decretar a irresponsabilidade de todos e roubar de cada um de nós o direito de tomar decisões individuais difíceis, mas por vezes necessárias.

Também me perguntaram se achava justo que ela morresse de sede e de fome, quando até criminosos têm direito a uma injeção letal. De novo, meu impulso moral é o de permitir a eutanásia ativa. Tudo acabaria muito mais rapidamente se a legislação norte-americana permitisse, como a holandesa, a utilização de coquetéis fatais. Esse, porém, não é o caso. Deve-se também frisar que eliminada a angústia provocada pela sede e pela fome, que Terri não é capaz de sentir, a morte por desidratação é um pouco menos pior do que parece. Após uma ou duas semanas, os desequilíbrios eletrolíticos provocados pela falta de água a levam a um coma e daí à morte, em mais alguns dias, por falência de órgãos vitais. Ela provavelmente não sente dor, mas tem de enfrentar um desconforto importante provocado pelo extremo ressecamento das mucosas e dos olhos. Se fosse um cachorro, um cavalo ou um preso, certamente receberia uma injeção de misericórdia. A lei americana, porém, lhe veda essa possibilidade. Ela só pode morrer por recusa de tratamento, o que definitivamente soa hipócrita.

Para finalizar, recorro uma vez mais a Sartre. A condição humana é uma "defaecatio" (emprego o latim para não utilizar a expressão de baixo calão). Tudo é sem propósito e, pior, ainda estamos condenados à liberdade, isto é, a tomar decisões que não acrescentarão nenhum sentido ao mundo. No universo existencialista, a justiça, como Deus, não existe, ainda que possamos ter o impulso de crer nessas ficções. Desconfio daqueles que se aferram demais a roteiros morais escritos vários séculos atrás. Eles parecem buscar pretextos para não ter de decidir por si mesmos, o que é também inútil: a recusa a decidir é ela própria uma decisão.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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