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hélio schwartsman

 

14/04/2005 - 00h00

Bom senso na UTI

Em seu "Discurso do Método", o genial filósofo francês René Descartes (1596-1650) escreveu: "O bom senso é a coisa mais bem-repartida do mundo". O argumento para provar a tese é também convincente: "Cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele [bom senso] que mesmo os mais difíceis de contentar em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuir mais do que já têm". Como tantas outras teorias, essa é uma que funciona melhor no papel do que na realidade. O próprio Descartes se viu compelido a redigir as "Regras para a Direção do Espírito", obra que poderia ser resumida como um manual de bom senso. Ora, se aquilo que os de língua inglesa chamam de "common sense" é o que de mais bem distribuído existe na natureza humana, seria absolutamente desnecessário prescrevê-lo na forma de conselhos. Como não é, podemos concluir que estamos diante de um conceito mais complexo e problemático do que supôs o grande Descartes.

Essa breve digressão sobre o bom senso vem a propósito da intenção do Ministério da Saúde de estabelecer diretrizes para internações e altas em UTIs. Trata-se de uma medida justificável --de bom senso--, mas que, receio, tenha sido mal compreendida. Comecemos pelo que ela não é. Não se trata de uma interferência indevida do governo nos destinos das pessoas ("escolher quem vai morrer") nem de um modo de acelerar o fim de vidas que o Estado julgue indignas de ser vividas ("instituição da eutanásia estatal"). Concordo que essas interpretações são possíveis. Diria até que são inevitáveis para os que simpatizam com teorias conspiratórias. Como garante a lei de Murphy, foram as piores leituras que prevaleceram, a ponto de levar o ministro Humberto Costa a "suspender" as discussões sobre sua proposta. Iniciativa, aliás, tola, uma vez que o debate já está lançado.

Em primeiro lugar, é bom frisar que critérios para internar um paciente numa UTI existem desde que essas unidades forma criadas. Embora eles não estejam consolidados em nenhum documento oficial do ministério, têm materialidade nos usos e costumes médicos. Mais do que isso, eles são milimetricamente estudados pelos especialistas em bioética de todo o mundo e constam de qualquer manual de deontologia médica. No fundo, o que deve valer é o bom senso. Se uma criança chega a um hospital vítima de choque hemorrágico sem co-morbidades --isto é, com excelentes chances de recuperação--, é mais do que razoável que tenha prioridade num leito de UTI. Já quem indicasse cuidados intensivos para um paciente terminal de câncer com dores excruciantes poderia ser tachado de sádico. O problema básico --o desafio mesmo da bioética-- é encontrar respostas para os 99% de casos restantes, que são muito menos óbvios do que esses dois.

O poder público, que é o gestor de grande parte da rede hospitalar, pode e deve estabelecer diretrizes para a internação e a alta com base em parâmetros técnicos e estatísticos. Como não há vagas para todos, renunciar a aplicar critérios é delegar ao acaso a decisão sobre quem vai viver e quem vai morrer. O Estado não deve e não pode, porém, esperar que as normas propostas sejam seguidas à risca. Ao contrário, é praticamente uma fatalidade que os protocolos que surjam caiam rapidamente em desuso. Cada caso é único, e só o médico assistente é capaz de apreciá-lo em sua totalidade, que inclui aspectos clínicos e também psicológicos, notadamente as expectativas do paciente e/ou familiares. Os critérios que o ministério possa estabelecer seriam mais úteis como um instrumento para promover uma mudança de cultura em relação às UTIs do que como um código de aplicação draconiana.

Com efeito, por vezes os médicos se ressentem da falta de argumentos teóricos para justificar que se deixe um paciente grave em leito comum ou mesmo em casa. Uma normatização técnica, além de oferecer a base racional, serviria também como um elemento a dar ao profissional de saúde a segurança de que ele agiu de acordo com o protocolo, o que é importante inclusive devido à possibilidade de processos judiciais.

Estima-se que de 15% a 20% dos leitos de UTIs estejam ocupados por pacientes irrecuperáveis. É um dado inquietante, pois indica que as vagas estão sendo mal utilizadas. Não se trata, é óbvio, de desligar as máquinas e deixar toda essa gente morrer. Mas tampouco é o caso de manter doentes crônicos em leitos intensivos, mobilizando recursos de que eles não necessitam. Aqui, seria preciso não só criar mais vagas de UTI mas também unidades de retaguarda, nas quais pacientes dependentes de respiradores tenham a assistência adequada e mais conforto para estar perto de familiares (o ideal seria mesmo que conseguissem ir para casa com o aparelho).

É claro que as coisas são mais complexas. Falemos agora de um lado menos nobre da medicina. Parte dos 15% a 20% de pacientes incuráveis nas UTIs brasileiras se explica porque não há nada mais conveniente para um médico intensivista que queira uma noite tranqüila do que um doente crônico. Sua história já é conhecida e seu quadro em geral se encontra estabilizado; se ele morrer, ninguém reclamará muito nem buscará investigar as causas do óbito ou apurar responsabilidades. Pacientes críticos recém-chegados dão muito mais trabalho. É preciso proceder à anamnese, corrigir seus parâmetros clínicos e ficar muito atento à sua evolução; é necessário ainda ouvir a família, normalmente abalada, pois foi pega de surpresa pela doença ou acidente, e dar-lhe os esclarecimentos necessários. Esses mesmos parentes podem criar dificuldades na hipótese de óbito.

Existe também, é claro, o aspecto econômico. Pelo menos na medicina pública, não acho que a questão do custo deva ser decisiva, ou só cuidaríamos de diarréias, que ainda insistem em matar milhares crianças brasileiras, e nem poderíamos ousar pensar em oferecer tratamentos caros (Aids, hepatite C) ou procedimentos de alta complexidade (transplantes, grandes cirurgias). Isso não significa, porém, que a questão financeira deva ser ignorada. UTIs procuram incorporar o que há de mais avançado em tecnologia médica --e isso é sempre muito caro, resultando numa conta salgada que é paga pelos contribuintes. Unidades intensivas são um remédio que precisa estar ao alcance de todos os que de fato dela necessitem. Justamente por isso elas devem ser usadas com sabedoria e parcimônia. Assim como seria um despropósito baixar portaria proibindo a internação de todos os pacientes com moléstias incuráveis, é preciso cuidar para que a preciosa tecnologia beneficie quem dela mais precisa.

Outro mérito da proposta da pasta da Saúde é trazer o tema das decisões de fim de vida para a discussão pública. Depois de ter passado algumas décadas sob o manto do silêncio, a morte em hospitais e UTIs felizmente começa a ser debatida de forma mais aberta. Vale lembrar que a proposta da pasta da Saúde foi precedida pela acre polêmica em torno do caso Schiavo e pela ampla exposição da doença do papa João Paulo 2º.

(Aproveito aqui para um parêntese. Muitos têm afirmado que Karol Wojtila, ao decidir que não iria para o hospital e morreria em seu próprio quarto, optou por não prolongar artificialmente a própria vida. Isso até pode ser verdade, mas não creio que seja exato afirmar que o Santo Padre recusou a parafernália médica. É certo que ele não foi para uma UTI, mas ela veio até seus aposentos no Vaticano. Uma das lacônicas notas da Santa Sé divulgadas nos últimos instantes de João Paulo 2º afirmava que o Sumo Pontífice estava recebendo "todas as provisões terapêuticas adequadas e assistência cardiorrespiratória", isto é, um respirador. De resto, o papa tinha à sua disposição, além de seu médico pessoal, dois intensivistas, um cardiologista, um otorrinolaringologista e duas enfermeiras. O ventilador mecânico e a equipe especializada a postos 24 horas por dia são os principais elementos a diferenciar um leito de UTI de um normal. O esquema utilizado no caso do papa é o melhor possível, mas de maneira nenhuma universalizável pela rede pública.)

Nenhuma normatização técnica vai, é claro, reparar as feridas nem resolver as carências da medicina pública brasileira. Ainda assim, a iniciativa do ministério, desde que sirva apenas para balizar a atuação do médico e não pretenda erigir-se em regras absolutas, é bem-vinda. Mesmo que não tenha nenhuma repercussão prática (hipótese não de todo descabida), permite que reflitamos um pouco sobre o fim da vida. Por mais que nos esforcemos para esquecer que um dia morreremos, essa é uma fatalidade para a qual é melhor que estejamos tão prontos quanto possível. Isso inclui deixar instruções --de preferência por escrito, afinal, não queremos repetir Terri Schiavo-- sobre o que desejamos em termos de tratamento, cuidados paliativos etc. Seria também útil que se criassem as leis necessárias para que a vontade do paciente seja respeitada. A legislação vigente é ambígua. Dá voz ao paciente, mas faculta ao médico fazer o que bem entender se julgar que é o caso. O bom senso não pode ser distribuído em pílulas, o que é mais uma razão para que nos acautelemos.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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