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hélio schwartsman

 

09/06/2005 - 00h00

Retratos do Brasil

Sou um corintiano meio relapso e por isso foi só recentemente que tomei conhecimento de que, no último dia 18, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) impôs ao augusto clube a perda de mando de três jogos por conta do mau comportamento de torcedores numa partida contra o detestável São Paulo. Pior, nos certames punitivos, a disputa deverá dar-se com os portões fechados, isto é, sem a presença do público.

É escandaloso. Estamos diante de um caso gritante de punição coletiva. Espectadores honestos e bem-comportados e o próprio clube --o qual não chega a ser um exemplo de honestidade nem de bom comportamento--, embora nada tenham a ver com as estripulias daqueles desordeiros, pagam por suas delinqüências. O escorreito torcedor fica privado de seu direito de assistir "in loco" a um espetáculo esportivo; o escrete alvinegro perde o incentivo de sua portentosa claque, que muitos consideram o 12º jogador; e a direção do time amarga significativo prejuízo financeiro.

Ora essa situação representa nada mais nada menos do que a negação do Direito, que tem como princípios basilares a individualização da conduta criminosa de acordo com lei previamente escrita e a aplicação de penas proporcionais ao agravo cometido. Fazer as coisas como é necessário no Estado de Direito exigiria que cada um dos baderneiros fosse identificado, que os ilícitos praticados por cada qual fossem descritos e se inscrevessem numa tipificação penal pré-definida. Com isso, seria possível levar os autores a julgamento, e, após o amplo contraditório, se sua culpa ficasse provada, eles poderiam ser condenados a sanções condizentes, como ter de prestar serviços sociais no horário dos jogos de seu clube. É claro que isso é muito mais difícil e trabalhoso do que simplesmente fechar os portões do estádio.

Em termos puramente jurídicos, o expediente do STJD não é diverso daquele aplicado pelo Exército israelense quando destrói as casas de palestinos suspeitos de atividades terroristas (a família inteira é punida) ou pelos nazistas quando "executavam" dez civis do país ocupado para cada soldado alemão morto em ações da resistência.

Antes que me acusem de proselitismo corintiano, devo dizer que minha revolta é mais jurídica do que clubística. Ainda que a contragosto, tenho de admitir que punições como essa são absurdas mesmo se aplicadas ao anojoso Palmeiras ou ao obnóxio Santos.

Outro problema grave dessa inovação penal-futebolística é que ela possibilita uma verdadeira guerra fria, repleta de operações sujas. Nada impede que uma torcida organizada, a solerte Gaviões da Fiel, por exemplo, crie divisões de infiltrados. Um grupo seleto, superando sua natural aversão a produtos de origem suína, compraria camisetas do Palmeiras, por exemplo, iria a um jogo dessa agremiação de origens fascistas, aprontaria uma confusão grande o bastante para engendrar uma punição e sairia de fininho. Esses torcedores-duplos teriam, em sua ótica, se divertido e prestado um serviço a seu clube de coração ao criar dificuldades para o inimigo. Tudo isso a um risco relativamente baixo. É só uma questão de tempo até as torcidas perceberem o que está a seu alcance fazer.

O que me deixou particularmente chocado ao descobrir a existência dessa nova modalidade de castigo foi constatar que porção expressiva dos torcedores o defende, incluindo setores da imprensa esportiva considerados sérios e com genuínas preocupações éticas. O principal argumento dessa gente é o de que medidas duras como o fechamento dos portões funcionam e são capazes de reduzir a violência nos estádios. Não duvido. Mas os buldôzeres israelenses também "funcionam", assim como o faziam os pelotões de fuzilamento nazistas. A questão não é se são capazes de lograr seus objetivos, mas se o fazem de forma ética, democrática e conforme o Direito. Aqui a resposta só pode ser negativa.

Para ser conseqüente, essa gente não poderia reclamar dos abusos cometidos pelos militares dos EUA em Abu Ghraib ou em Guantánamo nem por policiais brasileiros em delegacias país afora. Gostemos ou não, a tortura também "funciona". Não a toleramos porque é ilegal e imoral. Infringe o imperativo categórico kantiano, segundo o qual devemos agir sempre de acordo com uma máxima tal que queiramos ver transformada numa lei universal. Trocando em miúdos, devemos fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem. E devemos agir dessa forma não porque Deus ou a lei no-lo ordenam, mas simplesmente porque essa é a única atitude racional.

E, por falar em racionalidade, parece ser exatamente esse o item que mais falta aos apoiadores da punição coletiva aos torcedores. É claro que, do ponto de vista das conseqüências, não podemos compará-la à destruição de casas de palestinos ou aos fuzilamentos nazistas. Na estrutura, porém, não há, insisto, nenhuma diferença: vários pagam pelas ações de uns poucos. Desconfio que boa parte dos bons torcedores e excelentes jornalistas que aplaudem a nova norma jamais pararam para refletir sobre ela. Apenas seguem seus instintos e chancelam o que parece ser uma solução engenhosa capaz de reduzir a violência no entorno de partidas de futebol.

Infelizmente, essa é uma atitude de tipo muito perigoso. Tem a mesma genealogia do sentimento reinante entre norte-americanos e israelenses, quando julgam válido que seus Estados avancem linhas morais em nome da maior segurança para si e seus entes queridos. É perfeitamente compreensível, mas de modo algum justificável. O que é ou não moral varia de lugar para lugar e de época para época, mas existem divisórias que não devem ser transpostas. Uma delas é, creio, a do imperativo categórico kantiano materializado nos princípios jurídicos que visam a garantir que sanções penais atinjam apenas a pessoa do criminoso, não seus familiares, vizinhos, conterrâneos e contemporâneos. O fato de a medida dos estádios ter efeitos menores de modo algum a torna palatável. O futebol não determina os destinos do Brasil, mas diz muito a respeito do país. Aqui, o que desponta é um híbrido de algum talento, muita desorganização, bastante pilantragem e infinita ignorância. De fato, um retrato do Brasil.

PS - Para poupar emails, esclareço que os adjetivos antepostos aos clubes de futebol aqui citados são apenas uma brincadeira.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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