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hélio schwartsman

 

01/09/2005 - 00h00

Pedagogia legal

Juro que, depois desta coluna, vou tentar deixar a crise política um pouco de lado. Gostaria de fazê-lo desde já --imagino que, como eu, muitos leitores já estejam saturados desse noticiário--, mas há um ponto que acho importante explorar mais. Falo da acusação de que a mídia, eu incluído, se vale de dois pesos e duas medidas para julgar as ações do Partido dos Trabalhadores e as de outras agremiações.

Não sou advogado da imprensa e não tenho procuração nem disposição para defendê-la. No mais, a denúncia parece de fato procedente em relação a alguns veículos. Mas, da mesma forma que não é correto afirmar, a partir do escândalo do "mensalão", que todos os parlamentares petistas e da base aliada foram beneficiados por mesada, tampouco é exato dizer que todos os representantes da grande imprensa tratam o PT de forma diversa da que reservaram ao governo anterior. Sei que a memória costuma mesmo nos trair, e, por isso, a título de justiça histórica, lembro que o escândalo da compra de votos em 1997 foi revelado nas páginas da Folha. Na ocasião, o jornal exigiu em editorial uma CPI para investigar o caso. Também foi a Folha que, em 2000, divulgou a existência de uma planilha secreta que sugeria o uso de recursos ilegais na campanha de Fernando Henrique Cardoso em 1998. O jornal também cobrou investigações, sem especificar se através de CPI ou outros meios. Em ambas as situações, a Folha foi acusada por tucanos de agir em favor do PT.

Feitos os reparos históricos, passemos à questão substantiva, que é a de como devemos aplicar a lei. Como já escrevi neste espaço, na coluna "Lei e raça", "a melhor receita para produzir o pior dos mundos é aplicar com máximo zelo todas as leis vigentes". De fato, qualquer código penal do mundo traz um bom número de dispositivos absurdos e inócuos, alguns artigos às vezes úteis, mas que em várias situações precisam ser "esquecidos", e --também-- algumas leis fundamentais, para cujo cumprimento a sociedade deve realmente envidar grandes esforços.

Exemplos típicos da primeira categoria são a norma do Estado norte-americano de Minnesota que proíbe homens de manter relações sexuais com peixes vivos e as disposições do Distrito de Colúmbia (a cidade de Washington) que vedam a casais todas as posições sexuais que não a papai-com-mamãe. Mais exótica, uma lei da cidade de Oblong, Illinois, prevê sanções para o homem que praticar sexo no momento em que caça ou pesca no dia de seu casamento. Isso prova que não são apenas os nossos parlamentares que padecem da sanha legiferante. (Há na internet vários "sites" divertidíssimos como o www.dribbleglass.com, que traz exemplos de determinações muito estranhas ou absurdas).

No segundo grupo, o das regras às vezes úteis, encontramos normas que têm uma racionalidade, mas que não devem ser aplicadas de maneira draconiana, sob pena de gerar grandes injustiças. É o caso dos artigos 280 e 281 do Código Penal brasileiro, que vedam respectivamente o fornecimento de remédio em desacordo com a receita médica e o exercício ilegal da medicina. Na teoria eles fazem todo o sentido, mas podem converter-se numa ameaça se aplicados por exemplo contra alguém que ceda um antiinflamatório a um colega com dor de cabeça.

Por fim, existem leis realmente importantes, como as que proíbem o assassinato, o roubo e --acrescento-- o desvio de dinheiro público, caso em que representantes do PT estão metidos. Aqui, a sociedade precisa ser rigorosa. Deve não apenas mobilizar boa parte de seus efetivos policiais e judiciais para prevenir e combater esse tipo de delito como também ser intransigente na aplicação das penas previstas. Estes são casos em que a execução das sanções adquire o duplo propósito de punir o culpado para que ele não volte a delinqüir e servir de exemplo à coletividade, para que outros não o imitem. Deixar de aplicar os rigores da lei equivaleria a dizer que a norma não precisa ser obedecida, a exemplo das extravagâncias legais. Para utilizar as metáforas familiares tão caras ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não executar as sanções previstas seria como ameaçar os filhos com um castigo caso eles infrinjam uma regra, mas deixar de cumprir o prometido depois que eles aprontaram alguma: um desastre pedagógico. Admito que eu mesmo já "esqueci" punições apalavradas a meus filhos, só que o Estado, diferentemente de mim, que posso me dar ao luxo de ficar com dó dos meninos, é um ente impessoal e que deve se pautar exclusivamente por considerações racionais.

A pergunta que se coloca é: mas o PSDB também não foi apanhado em delito de financiamento ilegal de campanha? Sim. Por alguma razão, porém, o processo de apuração não foi adiante. A culpa é da imprensa? Talvez em parte. Sei que, na ocasião, a Folha revelou o escândalo e cobrou sua investigação. Eu, pessoalmente, defendi na coluna "Dom FHC, ou o burlador de Brasília" punição para o caso. Outros órgãos podem ter "pegado leve", acho, porém, que o mais decisivo para evitar uma CPI foi a "eficiência" do tucanato para abafar o escândalo. De qualquer maneira, é patética a atitude e o criminoso que procura defender-se das acusações que pesam contra si simplesmente afirmando que outros assassinos e ladrões saem impunes de suas delinqüências. Mesmo que seja verdade, o Estado só pode punir quem foi apanhado e, quando se trata de um ilícito grave e socialmente relevante como desvio de dinheiro e funções públicas, não há alternativa racional que não aplicar a punição prevista. Pode até ser doloroso para muitos de nós, mas, para os que se colocam do lado das instituições republicanas e não de partidos ou grupos políticos, é a única saída.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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