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hélio schwartsman

 

15/09/2005 - 00h00

O vírus da democracia

Como as coisas andam feias em Brasília, vou falar hoje do Oriente Médio. A idéia do presidente George W. Bush de disseminar a democracia na região a partir do Iraque é um fracasso monumental. Há nela, como procurarei mostrar, erros de concepção e de execução.

Em primeiro lugar, subjaz aí a discutível noção de que a democracia é uma espécie de vírus, que se propaga de país a país por contigüidade. Até acredito que alguns elementos característicos de regimes abertos, como o clamor pela liberdade de expressão, para citar um único exemplo, possam ser considerados "contagiosos", mas é óbvio que uma nação não se torna democrática apenas porque seu vizinho experimentou as urnas.

Parece-me também complicado o pressuposto de que a democracia favorece o combate ao terrorismo, que é uma das razões pelas quais Bush tentou justificar a intervenção no Iraque depois que ficou claro que Saddam Hussein não tinha as armas de destruição em massa que a Casa Branca dizia que tinha. A rigor, o melhor regime para reprimir qualquer tipo de crime é a ditadura, na qual policiais fazem o que bem entendem sem ter de prestar contas a ninguém. Bush e os comandantes militares norte-americanos evidentemente sabem disso. Não é por outro motivo que entregaram alguns suspeitos de terrorismo para ser "interrogados" no Egito, na Jordânia e em outros lugares onde o principal método investigativo da polícia ainda é o pau-de-arara.

Deixando de lado esses aspectos mais teóricos, que não costumam render argumentos muito eloqüentes mesmo, a principal falha do projeto neoconservador norte-americano foi de execução. Por razões que não cabe aqui discutir, o Iraque se converteu numa terra de ninguém na qual a única indústria que realmente prospera é a do terrorismo. A idéia de que, "libertados" pelos EUA, os iraquianos se organizariam num Estado livre e democrático que se converteria num exemplo a ser imitado por outras nações da região é hoje risível. Se o Iraque serve como modelo de alguma coisa, é justamente o de situação a evitar a todo custo.

É grande a desordem no país e as perspectivas são de piora. O impasse em torno da Constituição poderá levar a um cenário de fragmentação. Com efeito, a maioria xiita (60% da população) e os curdos (20%) foram diligentes em inscrever na Carta suas principais reivindicações. Fizeram-no, contudo, à custa dos sunitas (20%), que estão sub-representados no Parlamento. O problema é que qualquer acordo político que não inclua os sunitas está fadado a gerar mais violência, pois é esse grupo que constitui o foco da resistência. Se as tensões se ampliarem, os curdos poderão ver-se tentados a fundar um Estado independente no norte do país e, os xiitas, a aproximarem-se ainda mais de seus pares iranianos. Seria um duplo pesadelo para Washington, que, num só golpe, veria a maior parte do país "recém-libertado" converter-se numa teocracia próxima a Teerã e teria de administrar uma crise com a Turquia, país aliado que não admite nem por hipótese a idéia de um Estado curdo autônomo. Cerca de 20% dos turcos são curdos e também ambicionam a independência. A situação de Bush é tão ruim que mesmo a saída clássica de decretar vitória e retirar-se é bastante perigosa para os EUA.

Todas essas considerações acerca do desastre iraquiano não significam, porém, que a causa democrática não tenha avançado um bocadinho no Oriente Médio. Bush não é a única nem a mais poderosa das forças a atuar em favor da abertura na região nem limita suas ações ao tabuleiro iraquiano.

Já desde a primeira guerra contra Saddam Hussein, em 1991, os EUA vêm cobrando reformas de seus aliados no golfo Pérsico. Os progressos foram modestos, mas de modo nenhum desprezíveis. Se quisermos, um "efeito colateral" dessa liberalização foi o surgimento das redes de TV árabes internacionais Al Jazira, do Qatar, e Al Arabiya, dos Emirados Árabes Unidos, capazes de furar, ainda que bem-comportadamente, o bloqueio das informações representado por mídias controladas pelos governos locais. Às vezes até sem querer, essas emissoras contribuem para a circulação de diferentes pontos de vista no mundo árabe. Mesmo que não desejem, para preencher as 24 horas que compõem o dia com notícias, acabam mostrando como as coisas funcionam em outros países. E, correndo o risco de ser meio excessivamente hegeliano, novas idéias podem ser revolucionárias e são difíceis de matar.

Nesse contexto de mudanças, onde o próprio Iraque desempenha um papel, ainda que como contra-exemplo, registraram-se recentemente dois novos e significativos avanços. O primeiro foi a retirada das tropas sírias do Líbano, encerrada no final de abril. Aqui, foi fundamental a pressão internacional, e dos EUA em particular, sobre Damasco. Seria por certo um exagero afirmar que o Líbano finalmente livrou-se da presença síria e converteu-se num Estado soberano e democrático. Para começar, mais ou menos a metade dos libaneses vê com bons olhos a influência de Damasco, cujos agentes secretos permanecem em Beirute. Para terminar, o sistema político libanês baseado numa divisão demográfica do poder que não existe mais está há muito a cobrar aperfeiçoamentos antes de poder ser qualificado como realmente democrático.

Na semana passada, também por espontânea pressão de Washington, o Egito realizou a primeira eleição presidencial multipartidária de sua história. É claro que não dá ainda para falar em democracia. O presidente Hosni Mubarak, há 24 anos no poder, conquistou um novo mandato, que se estende até 2011. A diferença é que, em vez de sagrar-se líder em referendos arranjados no qual concorria sozinho --e vencia por margens de 93% dos votos-- disputou uma eleição fajuta com outros candidatos --e venceu com 88% dos sufrágios. O partido de Mubarak controla todas as instâncias de poder relevantes e conseguiu bloquear candidaturas de grupos islâmicos que poderiam ter algum apoio popular. Ainda assim, houve denúncias de fraudes. De todo modo, a idéia de que vários candidatos disputam o principal cargo provavelmente veio para ficar.

Já escrevi antes sobre as dificuldades do mundo árabe e islâmico com um sistema político aberto nas colunas "Paradoxos democráticos" e "Afegãos, ianomâmis e a democracia".

Fundamentalmente, defendi que a democracia, mesmo sem ser um valor universal, é a menos pior das formas de organização política que encontramos. Embora não faça sentido invadir uma aldeia ianomâmi para impor aos índios a democracia à golpes de fuzil, trata-se de um sistema cujos princípios norteadores devemos cobrar de todos os Estados mais ou menos organizados, como os do mundo árabe. Com efeito, não há razões para que egípcios e libaneses não possam escolher livremente seus dirigentes e não se obriguem a respeitar um núcleo fundamental de direitos das minorias. Não é o caso, evidentemente, de obrigá-los a fazer isso, mas de pressionar, dentro dos limites da diplomacia, para que adotem reformas democratizantes. A aventura iraquiana é a prova de que o conceito de democracia na marra, além de contraditório, tem grande chance de resultar no exato oposto do que se pretendia.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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