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hélio schwartsman

 

29/09/2005 - 00h00

Já é pizza

Dizem que ele não disse, mas, se tivesse dito, teria dito muito bem. Falo de Charles de Gaulle e da suposta declaração de que o Brasil não é um país sério. As evidências historiográficas são de que ele jamais proferiu tal frase, mas, se, passados 43 anos, a versão ainda prevalece sobre os desmentidos de diplomatas e historiadores, é porque a expressão é boa demais para dispensar um autor da estatura do general-presidente francês.

Se alguém ainda tinha alguma dúvida de que o Brasil não é sério pode olhar para o curso das investigações sobre o escândalo do "mensalão".

Vamos a uma rápida recapitulação dos fatos. Estamos diante de uma crise das graúdas. Já além de qualquer dúvida, temos um bom punhado de "réus confessos" que admitem ter transferido dinheiro ilegal para partidos e parlamentares. Temos também os nomes de alguns desses legisladores e a suposição, extremamente verossímil, de que vários outros que ainda não apareceram em listas também receberam. Os envolvidos afirmam que os recursos eram destinados ao pagamento de despesas de campanha. Duvido, mas admitamos que seja mesmo. Não é necessário mais do que a utilização de verbas eleitorais não-contabilizadas para configurar a quebra de decoro parlamentar, delito político cuja pena prevista é a cassação acrescida da perda de direitos políticos por oito anos após o termino da legislatura.

A conclusão lógica que se impõe é a de que todos os que comprovadamente receberam numerário distribuído pelo publicitário Marcos Valério teriam de ser inapelavelmente escorraçados do Parlamento. Essa, entretanto, está longe de ser a realidade. Nesse meandro particular, há pelo menos duas ausências gritantes, que contradizem a materialidade das provas até aqui recolhidas. Trata-se do senador Eduardo Azeredo (MG), presidente nacional do PSDB, e do deputado Ronivon Santiago (PP-AC).

Embora exista farta documentação ligando ambos ao chamado valerioduto, eles foram inexplicavelmente excluídos da lista de cassáveis produzida pela CPI dos Correios. No caso de Azeredo, os rumores são de que ele teria sido poupado como resultado de uma negociação entre altos dirigentes do PT e o tucanato. Já para Ronivon, não consegui encontrar nem esboço de explicação verossímil, exceto, talvez, pelo fato de o deputado ser "calejado". Ele já renunciou uma vez ao mandato para escapar de punição (em 1997 ele admitiu ter recebido R$ 200 mil para votar a favor da emenda constitucional que permitiu a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso) e já foi cassado pela Justiça Eleitoral por ter comprado votos na eleição de 2002. Permanecia no Parlamento por força de liminar.

Não estou, evidentemente, afirmando que ambos prevaricaram e precisam ser cassados. O que digo é que não há justificativa razoável para não terem sido incluídos na famosa lista dos 18 e processados no Conselho de Ética, ocasião em que teriam espaço para apresentar sua versão dos fatos. A disposição do presidente do Conselho, deputado Ricardo Izar (PTB-SP), de absolver alguns dos representados sugere que não estamos diante de nenhum rolo compressor que impossibilita o contraditório e a ampla defesa. Pelo contrário, há até motivos para temer que o "esprit de corps" fale mais alto em vários casos.

Observe-se, ainda, que Azeredo e Santiago não são os únicos "esquecidos". Que fim levou o deputado Paulo Pimenta (PT-RS), que era vice-presidente da CPI do Mensalão e se viu constrangido a deixar o cargo depois de ter sido apanhado numa tramóia para tentar "esquentar" uma lista apócrifa de recebedores de Marcos Valério? Aliás, em caso bastante semelhante meteu-se Rodrigo Maia (PFL-RJ). Se tentar ludibriar centenas de legisladores e milhões de brasileiros não rompe a dignidade do cargo, fica até difícil imaginar o que o faça.

Há ainda, o "affaire" Gonzaga Patriota. Pelo que se apurou no início da crise do "mensalinho", ele pode estar envolvido nos mesmos delitos que levaram à renúncia do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti (PP-PE), acusado de receber propina do dono do restaurante do 10º andar do anexo 4 da Casa ou extorqui-lo. Estranhamente, ninguém mais fala nisso.

Se quisermos, esse é o fracasso miúdo das apurações. Muito mais acintoso é o que as CPIs não fizeram nem dão mostras de que farão. Fosse esse um país sério, estaria em curso uma investigação detalhada sobre os recebedores institucionais, isto é, aqueles personagens que foram beneficiados com recursos repassados por Marcos Valério na qualidade de representantes de partidos, como --suspeita-se-- José Janene (PP-PR), Valdemar Costa Neto e José Borba (PMDB-PR), entre outros. Se a história contada pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) é pelo menos um pouco verdadeira, como vem se mostrando até aqui, o dinheiro sacado por essas figuras foi repassado a outros parlamentares, cujos nomes precisam ser identificados e cujas carreiras deveriam ser ceifadas. A tibieza dos esforços para tirar essa história a limpo é exasperante. Fica a sensação de que os investigadores temem "perder" mais colegas do que o recomendável.

É igualmente acintoso que as apurações não avancem em direção aos corruptores. Ou alguém realmente acredita que o dinheiro que abasteceu os parlamentares da base aliada e amigos do PT é o resultado de empréstimos obtidos por Marcos Valério? Aqui, vários braços do Executivo e várias empresas privadas teriam de ser esquadrinhados. Esse escândalo, contudo, por razões fáceis de imaginar, não é o primeiro em que a origem dos recursos é oportunamente esquecida nas investigações.

Ainda que cassem todos os 16 deputados cujos processos já estão no Conselho e considerando as três renúncias até aqui contabilizadas, essa história toda terá, sim, terminado numa imensa pizza.

Insisto no ponto que já defendi na coluna "Pedagogia legal" e nas duas que a antecederam. A pizza é a pior coisa que poderia acontecer ao Brasil. É preciso ser severo nas investigações e levá-las às últimas conseqüências, mesmo que isso leve ao impeachment do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Considerar que ele não sabia de nada é um insulto à sua inteligência. E, mesmo que não soubesse, ele é, como presidente da República, solidariamente responsável pelos atos de seus auxiliares mais próximos. Não se peca apenas por ação mas também por omissão. É claro que não é só Lula nem o PT. Uma rápida olhadela nas siglas mencionadas nos parágrafos acima mostra que as suspeitas se espalham de forma até que democrática. O que não dá para fazer, como ainda parecem insistir certos petistas, é pedir o impeachment de um presidente, FHC, cujo mandato já acabou. É evidente que o maior peso da atual crise vai recair sobre o PT. É ele, afinal, que está no comando --além de ter passado décadas afirmando que era um partido "diferente", que não se envolvia em falcatruas. O fato de os esquemas de corrupção de que a legenda se valeu já existirem não chega a ser um atenuante. É apenas motivo para ampliar a área das investigações.

Se há algo que pode contribuir para desmentir a frase que o presidente francês jamais disse é levar a apuração dos "mensalões" e "mensalinhos" a sério. Uma das definições possíveis para "seriedade" é "cumprir as regras até o fim". Regras que, não custa lembrar, fomos nós mesmos que estabelecemos.

PS - Na coluna passada, cometi o desatino de afirmar que "a 'luta' que culminou na independência [do Brasil] não produziu uma única gota de sangue". Não é verdade. Embora nossa independência tenha sido muito mais tranqüila que a de outras ex-colônias, houve, sim, derramamento de sangue por aqui. O caso mais notório é o da Independência da Bahia, episódio em que a população de Salvador se rebelou contras as tropas portuguesas acampadas na cidade e que não haviam aceitado o "brado retumbante" de d. Pedro. Depois de muitas batalhas --e algum sangue--, no dia 2 de julho de 1823, os baianos derrotaram os soldados portugueses do general Madeira de Melo. Agradeço aos baianos que me alertaram para o erro.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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