Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

hélio schwartsman

 

20/10/2005 - 00h00

Um "sim" pela razão

A defesa do "sim" no referendo sobre o desarmamento que perpetrei em minha última coluna Um "sim" filosófico gerou uma quantidade de e-mails superior à que consigo administrar, de modo que, como sempre faço nessas ocasiões, optei por não responder a ninguém individualmente como a boa educação exigiria. Peço desculpas. Como ainda temos três dias antes da votação, ensaio hoje uma réplica coletiva.

Começo tentando esclarecer alguns pontos que, a julgar pela correspondência, permanecem obscuros. Em primeiro lugar, esqueçam os bandidos. Eles têm a péssima mania de não respeitar as leis, de modo que alterá-las é algo que tende a ter pouco impacto sobre a conduta dos que não as cumprem. Nem o Estatuto do Desarmamento nem o referendo foram concebidos para controlar o crime organizado. Enfrentá-lo é algo que exige quase nenhuma reforma legal e muito trabalho policial. O máximo que as disposições da lei nº 10.826 podem fazer com o bandido é acrescentar-lhe mais alguns anos de pena pelo porte irregular de arma de fogo, o que, como fator de dissuasão, é mais ou menos a mesma coisa que nada.

O argumento, é claro, vale para os dois lados. Uma eventual vitória do "sim" tampouco vai "facilitar" a vida dos criminosos de carreira. Eles jamais terão a certeza de que todos os "cidadãos de bem" estarão desarmados e impossibilitados de reagir. Em primeiro lugar, se a minha interpretação dos textos legais é correta, ninguém precisará devolver as armas e as balas que mantenha legalmente em sua casa. E um bom número de pessoas continuará autorizado a adquirir armamentos e munição dentro da lei. Em teoria, a ação da bandidagem só seria facilitada se ela tivesse a certeza de não encontrar resistência em lugar algum, o que está longe de ser verdade. Um meliante nem precisa ter muito azar para invadir a casa de um militar, um policial, um praticante de tiro ou de qualquer integrante das várias categorias que terão permissão para porte.

Elas são tantas e tão maleáveis que não acredito que uma vitória do "sim" implique a cassação de direitos, hipótese em que eu seria o primeiro a votar "não". Quem mora no campo poderá declarar-se caçador de subsistência. Nesse caso, poderá comprar espingardas e balas.

Para os citadinos, o caminho é inscrever-se num clube de tiro. Alguns leitores me informam que, nesse caso, as autoridades só lhes dão autorização para o transporte da arma e não para o porte (a diferença é que, no primeiro caso, precisam levá-la desmuniciada). Em princípio eu acho ótimo. Quero preservar meu direito de xingar barbeiros no trânsito correndo o menor risco possível de receber um tiro como retribuição. Mas, como sou um sujeito solidário, recomendo a essas pessoas procurar um advogado. O Estatuto do Desarmamento estabelece que atiradores esportivos fazem jus ao porte de arma, sem especificar uma categoria especial. Se a regulamentação o fez, ela é contestável, pois decretos e portarias não podem criar exigências ou limitações não previstas em lei.

E, já que estamos discutindo teorias do direito, aproveito para expor a interessante tese do advogado Marcelo Carvalho Zeferino. Ele e alguns outros leitores entendem que o referendo tem caráter supraconstitucional, de modo que, se a resposta à pergunta sobre a proibição do comércio de armas for "sim", o resultado se sobreporá à "lei, à vontade política e até mesmo à Constituição". Trocando em miúdos, seríamos obrigados a levar a proscrição a ferro e fogo. Isso significaria que nem o Exército poderia adquirir armamento e projéteis dentro da lei. Em termos estritamente acadêmicos acompanho o raciocínio de Zeferino, mas não acredito que sua tese passe no critério da razoabilidade. Não dá para imaginar um dispositivo que impeça as próprias Forças Armadas do país de comprar artefatos bélicos e munição. Se o problema for levado até o Supremo Tribunal Federal, a quem caberia resolvê-lo, o bom senso sugere que prevaleceria a interpretação restritiva, a qual vincula o escopo do referendo ao artigo 35 do Estatuto do Desarmamento que o previu. De toda maneira, concordo que a pergunta apresentada "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?" foi formulada de modo enviesado e enganoso.

Alguns outros leitores reclamaram de eu ter me utilizado dos dados de redução de mortes por arma de fogo apresentados pelo Ministério da Saúde. Afirmam que os dados não são confiáveis. É claro que existe a possibilidade teórica de eles terem sido fraudados, mas não acredito. O governo, embora apóie o "sim", não é tão coeso, obediente ou organizado assim. São grandes as chances de que uma eventual ordem do Ministério da Justiça, o principal interessado no "sim", para maquiar números do Datasus, ligado ao Ministério da Saúde, jamais chegasse a seu destino. Ainda que chegasse, muito provavelmente não seria cumprida, pois existem na pasta técnicos sérios que não compactuariam com a fraude. Teriam pelo menos segredado a manobra a algum jornalista. A rigor, a suspeita de que o governo pode ter falseado números porque é parte interessada se aplica a toda e qualquer estatística oficial. Seria, contudo, um despropósito as desprezarmos todas devido a essa possibilidade.

Quanto à acusação que me foi feita de tentar apresentar como causa uma mera correlação, devo dizer que ela me ofende. Estudei um pouco de lógica. Em meu texto, deixei mais do que claro que estava falando de uma correlação. Na verdade, como tentei explicar, temos uma dupla correlação, pois os homicídios não apenas caíram na vigência da campanha do desarmamento como caíram mais nos lugares onde se recolheram mais armas. Isso "prova" alguma coisa? No sentido forte, não. Mas é evidência suficiente de que os fenômenos podem estar ligados numa relação de causalidade, ou, pelo menos, de co-fatorialidade. Em ciências sociais, dificilmente se tem a oportunidade de trabalhar com indícios mais fortes do que uma dupla correlação.

A pergunta que fica é: para que serve então o referendo? E a resposta é, como tentei mostrar no texto anterior: para quase nada. Na prática, imagino que a principal mudança será a proibição de adquirir novas balas e armas que se aplica apenas às pessoas que não têm porte. Quem fizer muita questão de andar armado e dispuser-se a cumprir as exigências poderá fazê-lo dentro da lei. É claro que torrar algo entre R$ 250 milhões e R$ 700 milhões para promover uma consulta em torno de tão pouco beira o perdulário.

Meu "sim", como já antecipara, é filosófico. Está mais para uma declaração em favor da idéia de que não precisamos de armas para acertar nossas diferenças. A razão, como o prova a história, não é o principal guia da humanidade, mas tampouco se afigura como um apêndice inútil e obsoleto. Sob a égide das ciências, fizemos alguns progressos ao longo dos três últimos séculos. Como quase nada vai mudar seja com a vitória do "sim" ou do "não", aproveito para transformar meu voto num pequeno e quase silencioso manifesto em favor da razão.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página