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hélio schwartsman

 

24/11/2005 - 00h00

Almas em um mundo sem alma

A alma é uma das mais belas metáforas jamais produzidas pelo gênero humano, mas é apenas uma metáfora. Ela é insubstituível na hora de fazer poesia, mas, quando o assunto é biologia, trata-se de um grande estorvo, que serve apenas para confundir, fazendo as pessoas procurarem por um suposto imaterial quando o que importa são fenômenos físico-químicos.

Faço essas considerações a propósito da desastrada decisão do procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal (STF) parecer em que se manifesta pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) nº 3.510, que pretende derrubar o artigo 5º da Lei de Biossegurança (nº 11.105), a qual autoriza pesquisas médicas com células-tronco embrionárias humanas.

Se o por alguns chamado Pretório Excelso acatar a argumentação da ADIn, haverá sérios danos à ciência brasileira e à própria noção de cidadania. Os pesquisadores experimentarão maiores dificuldades para atuar em um dos mais promissores campos da medicina: a engenharia de tecidos, que poderá um dia revolucionar os transplantes, eliminando a carência de órgãos e acabando de vez com o problema da rejeição. O país também poderá ficar para trás na investigação das causas de certas moléstias degenerativas, como diabetes, mal de Parkinson e até alguns tipos de cânceres. Os possíveis beneficiários dessas técnicas, que ainda são apenas promessas, muitas delas longínquas, não precisam preocupar-se muito. Terapias comerciais que surjam certamente chegarão por aqui. Por ora, a licença para operar com células-tronco embrionárias é importante para os pesquisadores, que teriam a oportunidade de fazer boa ciência básica sem preocupar-se em mendigar linhagens a seus colegas de países republicanamente viáveis e sem limitações impostas por regras de patentes.

É, entretanto, no plano das liberdades públicas que uma eventual vitória da ADIn se me afigura mais problemática, pois constituiria um duro golpe na separação entre Estado e igreja, talvez o mais importante legado das revoluções francesa e norte-americana. Com efeito, a ADIn 3.510 não é uma açãozinha qualquer baseada em pormenores técnicos, mas a reação católica à própria aprovação da Lei de Biossegurança, que marcou um importante avanço do laicismo no Brasil.

O redator da peça é Claudio Fonteles, que antecedeu Souza no cargo de procurador-geral da República. E toda a argumentação de Fonteles é, como o autor, fervorosamente católica. Mais católica do que técnica até. Partindo do pressuposto de que a vida começa com a concepção, o ex-procurador-geral argúi que a permissão para a pesquisa e a conseqüente destruição do embrião violam o caput do artigo 5º da Constituição, que estabelece o direito à vida. Até aí, tudo bem. A vida --e mesmo aquilo que seja vida apenas em potência-- é um valor a preservar. Só que nenhum dos princípios afirmados pela Carta o é de modo absoluto.

A própria Constituição prevê a pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a). Mais do que isso, todas as legislações do mundo admitem várias modalidades de homicídio justificado. É o caso do soldado que mata inimigos numa batalha ou do policial que dispara contra o ladrão em fuga e o leva desta para a melhor. Mesmo nós, os chamados cidadãos de bem (tenho dúvidas de que me encaixe nessa categoria, mas vá lá), seremos desculpados se, reagindo a uma situação de grave ameaça contra nós mesmos ou um terceiro, matarmos um celerado qualquer. O próprio aborto é, segundo nossas leis, por vezes admissível. Vale ainda lembrar que nem o Vaticano condena de modo peremptório a pena de morte. Se o fizesse, experimentaria apuros para explicar vários séculos de Santa Inquisição.

E não é apenas a proteção à vida que não é absoluta. No caso das células-tronco, é mais do que licença poética equipará-las a um indivíduo. O mais perto que o direito chega de uma definição de vida é a chamada personalidade civil, e ela só surge no "nascimento com vida" (Código Civil, art. 2º). A ordem jurídica tem de ser essa, ou as mulheres que tenham concebido e perdido o embrião se tornariam pela lei herdeiras de quem as fertilizou. Não é pouca coisa. Falamos de um contingente de almas penadas de duas a três vezes maior que a população, pois de 2/3 a 3/4 dos óvulos fecundados jamais se fixam no útero, resultando em abortos espontâneos. O chamado golpe da barriga dispensaria a própria barriga.

Não estou, evidentemente, afirmando que os fetos estejam desamparados. O mesmo artigo 2º protege os direitos dos nascituros "desde a concepção". Mas esses direitos não são os mesmos concedidos a um ser vivo com personalidade jurídica --ou a lei jamais poderia autorizar o aborto necessário (art. 128 do Código Penal), que é aquele exercido por médico para salvar a vida da mãe.

(A título de provocação, podemos sustentar, ainda na linha dos homicídios justificáveis, que o aborto é um direito inalienável da mulher porque a relação que o feto mantém com ela é, em termos estritamente ecológicos, um vínculo de parasitismo. E todo mundo deve ter o direito de livrar-se de parasitos alojados em seu corpo).

Na verdade, todo o raciocínio católico se funda num dogma --o de que a fertilização marca o instante em que a matéria passa a ser animada pela alma-- que não encontra nem sombra de amparo na biologia. Para começar, é difícil falar até em início da vida, visto que o próprio zigoto se forma a partir de matéria (óvulos e espermatozóides) que já era viva.

De resto, o instante da concepção não é exatamente um "instante". Entre a penetração do espermatozóide no óvulo e a fusão genética dos gametas ocorre um intervalo de 24 a 48 horas. Será que a alma leva todo esse tempo para ser soprada no novo ser? Pior, se assumimos todas as conseqüências dessa noção, mulheres que usam DIU ou tomam a pílula do dia seguinte deveriam ser processadas como assassinas em série, pois esses métodos contraceptivos impedem que o concepto --já com alma-- se implante no útero. (A Igreja Católica de fato condena toda forma "não-natural" de prevenção da gravidez, mas a maioria dos protestantes não vai tão longe).

Cabe ainda recordar que as células-tronco utilizadas em pesquisa são ainda menos do que um embrião que não chega a implantar-se no útero. O blastocisto utilizado é um emaranhado de cerca de cem células mantido sobre um disco de Petri, isto é, com chance zero de acomodar-se no endométrio dando início a uma gravidez.

O fenômeno da gemelaridade, então, é capaz de criar situações teologicamente grotescas. Gêmeos monozigóticos (idênticos) se formam entre um e 14 dias depois da fertilização, quando o concepto sofre um desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético. A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas. Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos? Quem fica com a "original"? E, se gêmeos partilharem a mesma alma, como fica o livre-arbítrio? Se um irmão pecar, levará o outro --talvez bonzinho-- inexoravelmente ao inferno? Ou a alma boa prevalecerá sobre a má, carregando para o paraíso uma ovelha negra? Ou será que as duas facetas se anulam, condenando ambos os indivíduos ao purgatório?

O pressuposto básico da liberdade religiosa é o de que nenhum grupo pode pretender impor seus dogmas ao conjunto da sociedade. Os católicos que queiram conservar-se bons fiéis têm o dever de acatar as recomendações e proibições determinadas por Roma. Para todos os demais, as opiniões do papa são tão boas quanto as de Fonteles, as minhas, as do já esquecido Roberto Jefferson ou ainda as do incrível Carlito Tevez --cada um faz sua escolha. O STF, contudo, para conservar-se nos limites de uma justiça republicana, precisa saber colocar fatos biológicos à frente de crenças e raciocínios jurídicos à frente de profissões de fé. Num mundo livre de dogmas, como deve ser o mundo democrático e plural, o direito é pura positividade e a alma não passa de uma metáfora.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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