Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

hélio schwartsman

 

08/06/2006 - 00h00

O espetáculo não pode parar

Hoje comento o julgamento que não houve. Falo do juízo de Suzane von Richthofen e dos irmãos Cravinhos pelo duplo homicídio dos pais da garota no final de 2002. A audiência estava marcada para a segunda-feira, mas, nesta terra generosa para com a chicana que é o Brasil, os advogados dos réus, valendo-se de meios discutíveis, conseguiram adiá-la para julho. Não pretendo, porém, discutir as manobras processuais e nem mesmo os aspectos psicológicos do caso, o que já fiz na crônica "Do parricídio", que ainda considero válida. Meu plano é apenas meter o bedelho na polêmica em torno de televisionar ou não a sessão do Tribunal do Júri que deveria decidir sobre o destino dos réus.

Pessoalmente, sou um entusiasta das transmissões televisivas. Se o julgamento já é público --e é fundamental para o Direito que assim o seja--, não há nenhuma razão para não buscar o auxílio da tecnologia a fim de levá-lo ao maior número possível de pessoas que queiram assisti-lo.

Não vejo, como os adversários da proposta, risco de transformar o juízo num espetáculo pelo menos não mais do que ele já é ou conferir-lhe um inoportuno caráter comercial. É claro que eu não apoiaria um modelo de transmissão que previsse mensagens publicitárias do tipo: "esta sessão do Tribunal do Júri é um oferecimento das Forjas Taurus". Até por razões de ordem prática, as imagens teriam de ser geradas e veiculadas por alguma emissora pública, como a TV Justiça. Canais comerciais nem teriam como interromper sua programação normal para colocar no ar um julgamento que pode levar 15, 16 horas ou mais. Usariam no máximo trechos para ilustrar seus noticiários --como, aliás, já fazem, só que, em vez de cenas da corte, usam tomadas de seus repórteres plantados diante do fórum.

De resto, embora alguns juízes não gostem de admiti-lo, a Justiça é fundamentalmente espetáculo. "Grossissimo modo", existem duas concepções de Direito. A primeira e mais antiga é conhecida como lei de talião. É o "olho por olho, dente por dente" do Antigo Testamento. É a noção que, no passado, reinava soberana. Tecnicamente, leva o nome de justiça distributiva. Não difere muito da vingança. Aplica-se a pena porque o réu a "merece". Essa noção de merecimento, é claro, só faz sentido quando dispomos de um Deus ou alguma outra entidade metafísica que sustente uma idéia de Justiça perigosamente platônica.

O conceito de justiça distributiva começou a ser questionado no século 18, especialmente por Cesare Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832). Foi ganhando força a idéia de que a pena tem como objetivo, não a punição pela punição, mas a manutenção da ordem pública. O criminoso deve sofrer uma sanção para desencorajar outras pessoas a imitá-lo. Daí a necessidade de julgamentos públicos e de algum modo ritualizados.

Ora, para efetivamente mostrar as conseqüências do ato de delinqüir, nada melhor do que mostrar ao máximo de pessoas não só os julgamentos como também as punições impostas, em especial quando elas incluem a sanção capital. Nesse contexto, é bastante hipócrita a posição norte-americana de valer-se da pena de morte, mas proibir sua transmissão pela TV. Um mínimo de coerência exigiria que esses momentos de afirmação do Direito fossem transmitidos em horário nobre.

(Antes que me acusem de bárbaro, esclareço que sou contra a punição máxima. Pelos estudos disponíveis, seu impacto sobre a taxa de criminalidade, seja para reduzi-la ou aumentá-la, tende a ser desprezível, e execuções têm a característica de tornar irreparáveis eventuais erros judiciais. Mas, quando um país decide adotar esse tipo de sanção, é de esperar que o faça com uma certa altivez, ou pelo menos de forma não-envergonhada).

De resto, o parentesco entre Justiça e teatro é quase auto-evidente, da disposição dos "atores" na sala ao fato de os mais importantes deles se valerem de vestimentas especiais, como a toga dos juízes ou a peruca ainda utilizada em tribunais ingleses. Vou um pouco mais longe e identifico uma relação entre a consolidação do sistema judicial e a própria noção de cidadania. Uma das datas-chave para a constituição da Inglaterra como nação e para a consolidação do próprio idioma da ilha é a decretação, em 1362, do "Statute of Pleading", que tornou o inglês a língua oficial dos tribunais.

Só vejo, assim, virtudes na "espetacularização" de julgamentos. Daí não se segue, é claro, que devamos incentivar manifestações de mau gosto e a exploração sensacionalista de casos como o dos Von Richthofen. Ninguém, contudo, ainda inventou uma forma não-censória de evitar esses e outros males da democracia.

Aproveito agora o ensejo para levantar uma outra questão, sobre a qual não tenho uma convicção muito forte. Falo da extinção dos Tribunais do Júri e sua substituição por uma instância mais técnica e menos emotiva. Inclino-me por essa opção, mas falta-me vivência nessa área para chegar a uma conclusão definitiva.

Há cerca de duas semanas, os jornais trouxeram a notícia de um Tribunal do Júri que absolveu o réu depois de lhes ter sido apresentada como prova uma carta psicografada na qual a própria vítima do assassinato escusava o acusado. É impossível saber se essa missiva influenciou a decisão dos jurados e em que grau, mas a simples possibilidade de que um apócrifo dessa natureza tenha definido o curso de um julgamento já é um bom argumento contra o Tribunal do Júri.

Além disso, a idéia de que o acusado deve ser julgado por seus "pares" fazia mais sentido numa Roma patrícia ou num vilarejo medieval europeu do que hoje, em sociedades multiculturais cujos padrões morais variam enormemente de um indivíduo para outro. Quem representa a "sociedade" numa São Paulo na qual convivem no mesmo bairro desde a beata que nem pode ouvir falar em sexo antes do casamento até o hedonista permissivo que não crê em Deus e acha que o inferno são os outros?

No mais, o trabalho de investigação policial se torna cada vez mais técnico. Interpretar de forma coerente as provas pode ser uma questão bem pouco trivial quando elas incluem relatórios de balística, exames de DNA etc. Cabe aí a mesmíssima crítica que Platão fazia à democracia: vence aquele que é mais hábil em convencer o "populacho", independentemente da justeza e da verdade de sua argumentação. Foram bons advogados de defesa atuando em tribunais do júri que criaram por aqui a famosa "legítima defesa da honra", conceito sem existência legal, mas que serviu para tirar da cadeia inúmeros maridos que mataram suas mulheres.

Esses são elementos para pensar apenas. A questão do júri está longe de ser prioridade num sistema judicial que vai caindo pelas tabelas e no qual abundam vícios bem piores. Muito mais urgente é fazer com que o intervalo entre um crime o julgamento de seu suposto autor seja de poucos meses --e não vários anos-- e impedir que artimanhas processuais adiem a punição para as calendas gregas. O espetáculo não pode parar.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página