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hélio schwartsman

 

20/07/2006 - 00h00

Guerras justas

Mais uma vez, o Oriente Médio está conflagrado. Desta feita, Israel enfrenta seus vizinhos árabes em duas frentes. Ao sul, combate palestinos na faixa de Gaza, território que entregou à administração da ANP (Autoridade Nacional Palestina) no ano passado. Ao norte, no Líbano, enfrenta milicianos xiitas do Hizbollah, grupo extremista que integra o governo de Beirute. Em ambos os casos, o Estado judeu responde ao seqüestro de militares capturados por comandos em incursões a Israel.

A chave para compreender o conflito está no termo "responde". É ele que vem dando o tom da disputa. Em suas ações, cada lado julga reagir legitimamente a uma provocação anterior da parte adversária. Palestinos e milicianos do Hizbollah não hesitariam nem por um instante em classificar o rapto dos soldados como "resposta" adequada à "agressão sionista", que priva os palestinos do "território que sempre ocuparam". O problema é que a resposta de hoje é o pretexto para a retaliação de amanhã, atitude que só faz crescer o número de tumbas nos cemitérios de todos os lados.

Para os que gostam de longas regressões, poderíamos fazer o certame remontar a tempos bíblicos, quando israelitas, representados pelo pequeno pastor David, enfrentavam os filisteus, emblematizados na figura do robusto guerreiro Golias. A metáfora funcionou bem até meados dos anos 70. Com efeito, nas guerras de 48, 67 e --até certo ponto-- a de 73, Israel era um pequeno país que confrontou --e venceu-- uma coalizão de inimigos bem mais fortes que pretendia varrer do mapa o Estado judeu. A partir de então, quando Israel já detinha indiscutível superioridade militar, a equação começou a inverter-se. Em 1982, veio a invasão do Líbano e os massacres de Sabra e Chatila, perpetrados por falangistas libaneses, que, com a conivência de tropas israelenses, assassinaram cerca de entre 800 e 3.000 refugiados palestinos. Nos anos 90, os papéis de David e Golias já haviam sido definitivamente trocados. Durante a primeira "intifada" (rebelião) eram os meninos palestinos que, munidos apenas de pedras, tentavam opor-se a soldados israelenses fortemente armados.

Quase 20 anos depois, alguns desses meninos palestinos se tornaram homens-bomba que explodem ônibus cheios de meninos judeus. A prevalecer essa lógica de ações e reações, o conflito jamais cessará.

Não se pode negar a Israel o direito de responder a uma violação tão flagrante de suas fronteiras soberanas como as executadas pelo Hamas e pelo Hizbollah. Tampouco se pode impedir o Estado hebreu de tentar proteger-se contra os homens-bomba ou os foguetes disparados por extremistas árabes de Gaza e do Líbano meridional. De modo análogo, não se pode contestar aos palestinos o direito de combater a ocupação israelense. Embora Gaza tenha sido devolvida, a Cisjordânia permanece sob controle militar do Estado judeu. Mais do que isso, as forças invasoras freqüentemente se valem de métodos moral e juridicamente condenáveis como punições coletivas --incluindo a demolição de casas--, assassinatos seletivos e a captura de suspeitos que permanecem anos e anos presos sem julgamento.

Numa análise sincera, ambas as partes têm todas as razões do mundo para odiar-se e querer eliminar a outra. Sob uma perspectiva realista, nem os árabes conseguirão lançar os judeus ao mar, nem os israelenses empurrarão os palestinos para a Jordânia. Seria melhor para todos, portanto, que aprendessem a conviver em paz.

O primeiro passo seria renunciar à lógica tribal das "retaliações" e adotar perspectivas de mais longo prazo. É preciso, antes de mais nada, encontrar um bom ponto de partida para definir o que cabe a cada um. Para evitar que a discussão recaia na teologia e tenhamos de debater se Deus tinha ou não o "direito" de entregar Canaã aos israelitas, é melhor ficarmos com a partilha estabelecida pela ONU em 1947. Ela foi, inicialmente rejeitada pelos árabes, mas estes agora dão mostras de querer acatá-la. Já os israelenses, estes a aceitaram no início, mas, à medida que foram ficando militarmente mais poderosos, começaram, com a criação dos assentamentos judaicos, a abocanhar nacos do território que caberia aos palestinos.

Fatores externos também contribuíram para a perpetuação do confronto. Um dos mais importantes foi a Guerra Fria. Sob esse prisma, este é o conflito que se esqueceu de acabar. Até os anos 80, a oposição entre árabes e judeus se inscrevia no contexto da da divisão do mundo em dois blocos antagônicos. Embora a disputa possuísse causas e objeto próprio, manifestava-se também como um subproduto da bipolaridade entre os EUA --que apoiava Israel incondicionalmente-- e a antiga União Soviética, que tinha vários Estados árabes como clientes.

Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o colapso da URSS, em 1991, surgiu uma janela para a resolução da querela, que pôde finalmente ser reduzida ao que realmente é: uma contenda entre israelenses e palestinos por território. Não pretendo, com tal simplificação, esconder os enormes obstáculos que dificultam um entendimento entre as duas partes. Eles incluem, para citar apenas os mais importantes, o estatuto de Jerusalém, cidade reivindicada por ambos os lados como capital, e o direito de retorno/indenização dos refugiados palestinos e seus descendentes. São, entretanto, problemas que poderiam em princípio ser resolvidos com alguma negociação e muito dinheiro. Chegou-se a algo próximo de uma solução na cúpula de Camp David em 2000, mas, por razões que não cabe aqui comentar, o esforço fracassou e, desde então, a situação não cessa de deteriorar-se.

Para agravar ainda mais as coisas, vieram os ataques de 11 de Setembro, e os termos do conflito, que havia sido despido a seu elemento territorial, voltaram a ser revestidos de roupagens ideológicas. Já não se trata mais de acomodar populações, mas de decidir a "guerra de civilizações", o conflito do Islã com o Ocidente, a contenda entre o "bem e o mal", entre a democracia e o terror. Foi a festa para os radicais. O que já era difícil --encontrar bases para discutir a paz-- tornou-se impossível.

Os EUA, a única superpotência mundial, que vinham, mal e mal, desempenhando o papel de árbitros na negociação, penderam definitivamente para o lado de Israel. Parte das massas árabes viu as intervenções ocidentais no Afeganistão e no Iraque como uma nova cruzada do presidente George W. Bush contra o Islã. A ação de grupos extremistas como Al Qaeda, Hamas, Hizbollah, Irmandade Muçulmana intensificou-se. O próprio mundo islâmico dividiu-se. De um lado, ficaram os chamados "moderados", na verdade, governos autoritários, mas que mantêm boas relações com os EUA e aceitam negociações, como Arábia Saudita, Egito e Jordânia. Do outro, o "eixo do mal", isto é, o Irã e a Síria, não por acaso, os grandes financiadores do Hizbollah e do Hamas. É sintomático que a Arábia Saudita, ignorando 50 anos da mais afiada retórica anti-Israel, tenha responsabilizado o Hizbollah pela presente crise. Também não é um acaso que os "moderados" enfrentem problemas domésticos crescentes com a oposição fundamentalista.

Ninguém jamais perdeu dinheiro por apostar contra a paz no Oriente Médio. Mesmo assim, contrariando todas as regras prudenciais e os ensinamentos da história recente, arrisco afirmar que dentro de mais algumas décadas, israelenses, palestinos e árabes em geral experimentarão a tão ansiada paz. Não porque passarão a amar-se, mas simplesmente porque estão condenados a ser vizinhos. O caminho para fazê-lo já está dado. É preciso abandonar a lógica da rixa e voltar os olhos para os processos históricos de longo prazo. O que falta, por ora, é conter os radicais de todos os lados e providenciar estadistas corajosos o bastante para estender a mão ao inimigo.

Para os céticos, vale a lembrança de que os aliados de hoje muito freqüentemente foram inimigos no passado. A França lutou contra a Alemanha encarniçadas batalhas durante a Primeira Guerra Mundial e viveu os horrores da ocupação nazista na Segunda. Hoje, os dois países lideram a Europa comunitária.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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