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hélio schwartsman

 

27/07/2006 - 00h00

Olhando para o futuro

Como era previsível, minha coluna da semana passada sobre a crise no Oriente Médio gerou toda espécie de manifestação de leitores. Houve os que concordaram com o texto, os que o consideraram parcial em favor de Israel e uns poucos que o julgaram excessivamente pró-árabes, resultado que interpreto como sinal de que logrei caminhar numa linha razoavelmente equilibrada. Mas, como vários missivistas, levantaram questões semelhantes, acho que é o caso de perpetrar uma segunda "rodada" de Oriente Médio na qual procurarei me aprofundar sobre o tema e desfazer algumas leituras que julgo equivocadas.

Começo pelo título: "Guerras justas". Aqui, eu errei. Com todos os anos de jornalismo que tenho nas costas, já deveria ter aprendido a não usar de ironia, especialmente não em títulos. A probabilidade de ser mal interpretado é enorme. Em nenhum momento do texto afirmei ou sugeri que a resposta dada por Israel às provocações e ataques do Hizbollah é "justa" ou mesmo adequada. O que disse --e reitero-- é que Israel tem o direito de defender-se dos ataques lançados por milicianos a partir de território libanês ou de Gaza. Nenhum país consegue sobreviver recebendo continuamente saraivadas de foguetes sobre a cabeça de seus cidadãos.

Empreguei o termo "guerras justas" numa alusão ao fato de que, diante do retrospecto do conflito e das barbaridades cometidas de parte a parte, tanto israelenses como palestinos "têm todas as razões do mundo para odiar-se e querer eliminar a outra". Cada lado julga travar uma "guerra justa" contra o adversário. E é precisamente esse o problema do Oriente Médio. Como todos acreditam sinceramente estar certos, ninguém parece disposto a ceder o suficiente para alcançar a paz.

Resolvido o problema do título, passemos ao que eu não disse. Vários leitores me recriminaram por não ter mencionado entre as causas do conflito o lobby da indústria bélica, o petróleo e vários outros fatores. Acrescento que também deixei de apontar o aquecimento global, que certamente desempenha um papel aí, embora eu não saiba exatamente qual.

É claro que armas e reservas petrolíferas são importantes para qualquer tentativa de compreender não só o Oriente Médio como o mundo atual, mas há causas mais próximas e mais remotas. Os interesses da indústria bélica não chegam a determinar as decisões dos generais israelenses. Aliás, para um gigante do ramo, como a Lockheed Martin, não muda muito se Israel lança ou não bombardeios com seus aviões. Basta que o Estado judeu mantenha sua frota aérea "up-to-date" (atualizada), o que ele faz quer chegue ou não às vias de fato com o inimigo. Para os grandes fabricantes, a corrida armamentista substitui a contento guerras atuais.

Voltemos agora ao difícil problema da adequação ou não da resposta israelense. Como eu disse, Israel tem o direito de defender-se dos ataques do Hamas ou do Hizbollah, inclusive militarmente. Não creio, entretanto, que o governo do premiê Ehud Olmert tenha tomado a decisão mais sábia ao lançar bombardeios indiscriminados a posições da milícia e à infra-estrutura de todo o Líbano. Acredito que assaltos limitados a alvos do Hizbollah no sul do país teriam servido melhor aos interesses de Israel. A opinião pública libanesa --ou pelo menos 2/3 dela, isto é, os cristãos e sunitas-- teriam se colocado contra a milícia, por ter lançado o país numa guerra à revelia do governo. Também a maior parte da comunidade internacional teria, pela primeira vez em décadas, se colocado ao lado dos israelenses. São fatores que poderiam ter levado a uma mobilização para que a resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU, que determina o desarmamento de todas as milícias no Líbano --isto é, o Hizbollah, a única restante-- fosse finalmente implementada.

Em vez disso, ao responder com força provocando um número elevadíssimo de morte de civis, só o que o Estado hebreu consegue é colocar toda a população libanesa e grande parte dos países europeus contra si. Pior, "justifica" o discurso do Hizbollah de que o grupo deve permanecer armado para defender o território das investidas israelenses.

Aproveito aqui para traçar uma distinção que julgo importante. Várias das mensagens que recebi equipararam a ação israelense à dos terroristas ou ao nazismo. Vamos com calma. Sou o primeiro a condenar as punições coletivas impostas por Israel aos palestinos. Também defendo o direito dos palestinos de promover ações armadas contra soldados e colonos israelenses na Cisjordânia ocupada --embora considere essa uma tática burra. Mas há uma diferença moral entre o míssil disparado contra um alvo militar que inadvertidamente mata um civil, e o homem-bomba que se explode em lugares apinhados de gente para matar o maior número possível de pessoas inocentes. É claro que, para quem morreu, dá absolutamente na mesma ter sido abatido de uma forma ou de outra, mas, em termos éticos, a distinção deve ser considerada. Não estou, com essas observações, desculpando Israel ou os EUA pelas mortes de civis em bombardeios, o que considero um erro e um crime, embora menor do a matança em tropel visada num ataque terrorista. Vale a inda lembrar que milicianos costumam instalar suas bases em áreas densamente povoadas justamente para proteger-se dos disparos inimigos.

Peço agora licença para uma digressão histórica talvez longa. Muitos leitores me perguntaram a quem, afinal, pertencem "de direito" aquelas terras que tanta confusão provocam. Como tentei colocar no texto anterior, não existe uma resposta clara. Os judeus estiveram ali com Estados próprios que existiram de forma intermitente mais ou menos por mil anos, entre 1.200 a.C. e 200 a.C. É claro que, nesse, período travaram guerras com a maior parte de seus vizinhos, incluindo os filisteus, ancestrais dos palestinos.

Em 70 d.C., após o fracasso da primeira revolta judaica contra os romanos, o imperador Tito manda destruir o Segundo Templo em Jerusalém. E as coisas só pioraram com o malogro da segunda rebelião contra os romanos, liderada por Bar Kochba em 132 d.C. Boa parte dos judeus foi escravizada, e um número ainda maior foi expulso da região. É a famosa segunda diáspora.

Em 638, os muçulmanos arrebatam Jerusalém ao Império Bizantino. É quando os árabes chegam à região e, ao mesmo tempo, convertem e arabizam a população local, composta por mais de uma dúzia de povos, inclusive judeus. Alguns destes, entretanto, assim como vários cristãos, jamais abandonaram sua fé. Os árabes cobravam-lhes um imposto especial --a "jiziat"-- e permitiam que vivessem tranqüilamente, a maior parte do tempo pelo menos.

A partir do final do século 19 surge o movimento sionista. Diante dos episódios de anti-semitismo que eclodiam na Europa, grupos de judeus, a maioria de inspiração socialista, defende a criação de um Estado nacional judaico na Palestina, à época uma província do Império Otomano. Judeus acorrem à Palestina e vão comprando terras do Estado otomano e de particulares árabes, onde se instalam.

Em 1917, em meio à Primeira Guerra Mundial, o chanceler britânico, Arthur J. Balfour, de olho principalmente no apoio dos judeus americanos, emite a Declaração Balfour, na qual "promete" um Estado nacional judaico. Em 1920, após o colapso do Império Otomano, a Liga das Nações, antecessora da ONU, confere aos britânicos um mandato sobre a Palestina. Começam aí os primeiros atritos e matanças entre judeus e árabes.

Para encurtar a história, veio a Segunda Guerra Mundial e, após a revelação dos horrores nazistas, a causa judaica ganhou simpatia mundial. Em 1947, a ONU aprova uma resolução dividindo a Palestina entre judeus e árabes. Em 14 de maio de 1948, David Ben Gurion proclama o Estado de Israel. Os árabes, que jamais haviam aceitado a Declaração Balfour nem a divisão de 1947, declaram guerra a Israel que, contrariando todas as expectativas e a superioridade numérica dos adversários, vence. Repete o feito em 67, a Guerra dos Seis Dias, na qual conquista a península do Sinai (que acabaria sendo devolvida ao Egito no âmbito do acordo de paz firmado entre ambos), Gaza, a Cisjordânia e as colinas de Golã.

Como se vê, é difícil dizer a quem "pertence" as terras. Ambos os lados podem extrair da história argumentos consistentes em favor de sua causa. É verdade que os árabes estavam lá antes dos judeus. Mas também é verdade que, ainda antes de existirem árabes, os israelitas ocuparam a área. É certo que o imperialismo do Reino Unido "deu" aos judeus uma área que não lhe pertencia. Mas também é fato que os judeus foram expulsos de sua pátria pelo imperialismo romano. Na verdade, todos os Estados atuais devem sua existência e conformação a algum tipo de imperialismo. Podemos fazer críticas morais a esse processo, mas não há como "corrigir" as injustiças que gerou. Fazê-lo implicaria, por exemplo, devolver as Américas aos índios.

Assim, para discutir seriamente a paz no Oriente Médio, é preciso tomar a partilha de 47 como ponto de partida. Recusá-lo equivale a querer aniquilar um dos lados --ou bem atirar os judeus ao mar ou empurrar os palestinos para além do rio Jordão. Ninguém conseguirá isso.

Contrariando todas as evidências empíricas disponíveis, acho que existe uma chance para a paz, ainda que apenas no longo prazo. Se o velho Karl Marx tem só um pouquinho de razão, uma guerra em torno de um território que já está mais ou menos definido e que apenas prejudica o desenvolvimento econômico de ambas as partes não pode durar para sempre.

É possível que se encontre uma solução negociada para o conflito. Basta que os dois lados aprendam a esquecer o passado e consigam olhar para o futuro.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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