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hélio schwartsman

 

09/11/2006 - 00h00

Leis, salsichas e mídia

Como eu receava, minha coluna da semana passada não foi bem compreendida, a julgar pelas mensagens que recebi. Por isso, peço licença para insistir uma vez mais no tema, talvez um pouco insosso, mas definitivamente importante.

Antes de mais nada, gostaria de rebater a acusação de ter feito uma defesa corporativa da mídia. Embora eu trabalhe na imprensa, não é exato afirmar que pertenço à corporação: o sindicato simplesmente não me aceita, porque não tenho diploma de jornalista. Reconheço, entretanto, que esse é um argumento puramente legalista, e no pior sentido do termo. Meu ponto central é bem outro.

Como tentei explicar no texto anterior, o jornalismo está bem próximo de ser a realização diária de uma impossibilidade teórica. A tal da """objetividade""" que perseguimos é uma quimera. Pior, sua "inexistência objetiva" não nos exime de correr atrás dela. E essa, frise-se, é apenas a razão filosófica que contribui para tornar o jornalismo uma atividade precária. Existem muitas outras, relacionadas a condicionantes mais prosaicos, como gostos, preferências e até o humor daqueles que se encarregam de apurar, escrever e editar as notícias.

Se quisermos, o jornalismo é uma indústria que reúne todas as inconsistências e problemas típicos das ciências humanas e ainda os agrava com sua pressa e ligeireza. Se há algo de surpreendente, não é que o jornalismo erre, mas sim que também seja capaz de acertar. Quer a tradição que o chanceler Otto Von Bismarck (1815-1898) tenha cunhado a frase: "Leis são como salsichas; é melhor não saber como são feitas". Muitos já propuseram acrescentar jornais a essa lista. Não defendo, portanto, a imprensa apenas por seus acertos mas também por seus erros. No caso da Folha, por acertar e errar de modo mais ou menos uniforme com diferentes governos.

Vários leitores citaram a divulgação das fotos do dinheiro que seria usado para comprar o dossiê antitucano como exemplo de comportamento pouco ético da imprensa. Os meios de comunicação teriam agido mal ao não informar que as imagens foram fornecidas pelo delegado Edmilson Pereira Bruno, que ainda inventou uma história para tentar esquivar-se da responsabilidade por sua atitude.

Aqui, eu estou com o ombudsman da Folha, Marcelo Beraba. Não era preciso que os jornais chancelassem a fábula de Bruno, mas esse é quase um detalhe. É absolutamente normal e necessário ao exercício do jornalismo que se possa preservar a fonte da notícia, direito, aliás, assegurado pela Constituição. O mais importante, porém, é que a divulgação das fotos era plenamente legítima. O dinheiro, afinal, existiu e foi apanhado com membros do PT que tentavam comprar o dossiê.

Para os que gostam de comparações com a era FHC, vamos lá. Se, desta vez, a Folha usou de estratagema discutível para não revelar de onde vinham as fotografias, que haviam sido feitas e obtidas legalmente, foi ainda mais longe em 1998, no episódio dos grampos do BNDES. Ali, a Folha divulgou gravações de origem sabidamente ilegal para levar a público graves suspeitas em torno da atuação do governo na privatização das teles. Não pretendo, com isso, provar nada além do óbvio: a Folha, como outros jornais, está sempre procurando falcatruas perpetradas por governos, que tendem a ser muitas. Quando as encontra, revela, em nome do interesse público.

Daí não se segue, é claro, que jornais e jornalistas tenham sempre a """verdade""" a seu lado. Assim como governos, eles tendem a errar muito: exagerar, deixar de ver o óbvio, prender-se a detalhes insignificantes, quando não cometer deslizes ainda mais básicos, muitas vezes por falta de conhecimento técnico. Apesar de tantas e tão freqüentes falhas, é importante que exista uma imprensa de olho na administração. Essa é uma tarefa importante demais para ser deixada apenas a cargo de instituições oficiais, como o Congresso ele próprio metido em boa parte dos escândalos e o Ministério Público.

Como afirmei na coluna anterior, uma relação "saudável" entre imprensa e governo será sempre tensa, com cada lado reforçando os pontos fracos do "adversário" e deixando de ver os seus próprios. A resultante desse diálogo de surdos, porém, tende a ser benéfica para as instituições e a democracia.

Passemos agora à questão específica de como os meios de comunicação trataram o PT. Não sou eu quem vai afirmar que não houve exageros e arroubos antipetistas. Também parece para lá de óbvio que o PT, ou pelo menos altos membros do governo e da cúpula do partido, chegou a extremos em seus transportes anti-republicanos. Pouco importa se o mensalão se deu ou não conforme o descreveu o ex-deputado Roberto Jefferson. O fato relevante é que houve a distribuição ilegal de dinheiro a parlamentares da base aliada, no que configura um crime grave contra as instituições. Mais ainda, é bastante provável que tais recursos tenham sido desviados de cofres públicos ou de estatais.

Era obrigação moral dos meios de comunicação divulgar essa história, ainda que ela apresente lacunas devido a falhas nas investigações. A insistência ou o tom com que o fizeram fica ao gosto do freguês. Nem o leitor precisa concordar com os editoriais e comentários que lê, nem o eleitor precisa levar em conta nada do que é publicado pela imprensa na hora de votar. O que caracteriza um regime de liberdades democráticas é que cada um pode fazer o que bem entende até o limite da lei.

Não me incluo entre os que acham que o mercado é a solução para tudo, mas, se há um problema que ele resolve, é o da oferta de opiniões. Sobretudo em tempos de internet, qualquer um pode encontrar veículos que reflitam com mais precisão seus próprios pensamentos. Quem acha que a Folha persegue injustamente o PT pode abraçar a "Carta Capital" ou mesmo as publicações oficiais do partido. Eu próprio já há muito deixei de ler os grandes hebdomadários brasileiros.

Em relação à TV, admito, a coisa é um pouco diferente por tratar-se de concessão pública. De toda forma, o avanço da tecnologia já está prestes a tornar a limitação física ao número de emissoras coisa do passado, hipótese em que a lógica do mercado poderia em princípio operar. No mais, não me parece que, desta vez, a Globo tenha sabotado a candidatura Lula. Talvez até o contrário, dependendo do instante que se escolha para analisar.

Para encerrar, identifico uma postura levemente autoritária em todos aqueles que muito insistentemente cobram "objetividade" da mídia. Para além do fato de a imprensa não poder por definição ser plenamente "objetiva", fica a sensação de que eles consideram o eleitor um incapaz que precisa ser "protegido" dos meios de comunicação. Isso até pode ser verdade, mas o pressuposto da democracia é o de que cada cidadão é suficientemente autônomo para formar suas próprias convicções. Se assim não for, nem vale a pena começar a jogar o jogo democrático.

PS - Na semana que vem, em virtude do feriado, não escreverei a coluna.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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