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hélio schwartsman

 

23/11/2006 - 00h00

Encantamentos

Outro dia, intimado por meus filhos gêmeos Ian e David, agora com quase cinco anos de idade, acedi a uma brincadeira de esconde-esconde com os dois. É incrível como eles roubam --e não só no esconde-esconde, mas também no dominó, jogo da memória, mico etc. Evidentemente, coube a mim a tarefa de procurá-los. Até aí, tudo normal. Assim como já considero normal que o próprio solo se transforme em pique sempre que estou prestes a apanhá-los. Para não perder mais uma vez, resolvi dar uma de esperto e arranquei dos garotos o compromisso prévio de que, desta vez, brincaríamos "sem pique". Já antecipava o doce sabor da vitória e, assim, qual não foi minha surpresa quando, encontrando-me a dois dedos de agarrar Ian, ele simplesmente gritou: -- Ian salvo, um, dois três. Um pouco mais tarde, o fenômeno se repetiu. David, percebendo que não conseguiria apanhar-me, bradou: -- Papai pego, um, dois, três.

Fiquei encantado. O jogo transportara-nos para uma outra dimensão, senão mágica, pelo menos epistemológica, onde invocações e conjuros podem tomar o lugar de ações. Em vez de efetivamente colocar-se a salvo ou de segurar a presa, basta anunciar a intenção de fazê-lo. A declaração, seguida da fórmula infanto-hierática "um, dois, três", substitui a atitude. Imediatamente, vieram-me à mente os capítulos iniciais de "As Palavras e as Coisas", de Michel Foucault. Mas vamos com calma.

Embora alguns livros de história tentem nos ludibriar passando a impressão de que a "ratio" ocidental é o resultado de um processo cumulativo que teve início na Grécia clássica e encontrou seu apogeu no método científico, não foi exatamente assim que as coisas se passaram. A similaridade entre o atomismo de Demócrito e Epicuro e o de Rutherford e Bohr, por exemplo, está apenas no nome. A "física" grega era essencialmente especulativa. A idéia mesma de experimento, tão fundamental para as ciências empíricas, soava excêntrica aos ouvidos helênicos. À experimentação dedicava-se apenas gente tida por biruta como Arquimedes. Filósofos legítimos retiravam as Verdades de suas próprias cabeças. A maiêutica socrático-platônica não é muito mais do que fazer o interlocutor "descobrir" Verdades que já conhecia, ainda que não estivesse consciente delas.

Voltando a Foucault, em "As Palavras e as Coisas" ele identifica duas grandes descontinuidades na "epistéme" da cultura ocidental pós-Renascimento. A primeira é a que se dá por volta de meados do século 17 e que inaugura o Classicismo; a segunda é a que ocorre no século 19 e marca o limiar da nossa modernidade científica. Interessa-me aqui o estado das coisas anterior à primeira ruptura.

Com a erudição que lhe é peculiar, Foucault mostra que, até o fim do século 16, era a noção de semelhança que ditava as regras do jogo, fundando a própria possibilidade do saber. Conhecer era descobrir analogias entre as coisas. A trama semântica mobilizava conceitos como "amicitia, aequalitas, consonantia, proportio, similitudo". O acônito é uma planta que cura as doenças dos olhos, e sabemos disso porque suas sementes são pequenos globos escuros (olhos) envoltos numa película branca (pálpebra). A ciência consiste em saber ler esses sinais. De modo análogo, a simples contigüidade é capaz de transmitir poderes. Respirar o perfume de uma rosa fúnebre basta para deixar uma pessoa "triste e agonizante", como assevera o tratado de "Magia Natural" de G. Porta. Para nós, o conceito mesmo de "magia natural" é uma contradição nos termos, já que a magia, como o milagre, implica a suspensão momentânea das leis naturais que regem nosso mundo.

No universo "analógico", a linguagem desempenha um papel de relevo. Ela está a meio caminho entre as figuras visíveis da natureza e as conveniências secretas dos discursos esotéricos. Sendo ela própria um objeto da natureza (o signo aqui não é arbitrário, mas participa da essência das entidades que designa), conserva poderes especiais. É dessa relação íntima entre signo e objeto que emerge a força encantatória das palavras. A magia, frise-se, é natural. Ian não precisa realmente conseguir fugir de mim; basta que invoque, pela palavra, tal condição.

Esse emaranhado confuso e em princípio infinito de analogias e similitudes como base e objeto do saber não morreu com o advento do Classicismo e nem mesmo com o da modernidade científica. Ele está preservado em uma série de relíquias que vão além da brincadeira de esconde-esconde, jogo cujos registros mais antigos remontam ao século 2º.

A "epistéme" das parecências ressurge, por exemplo, na astrologia hodierna e na homeopatia. Com efeito, o pressuposto da primeira é a "consonantia" entre ciclos celestes e humanos. Já a segunda, apesar de criada no século 19, quando o método científico já apresentava seus primeiros frutos, assume de forma explícita o paradigma pré-clássico na fórmula "similia similibus curantur" (coisas semelhantes são curadas por semelhantes). Não deixa de ser curioso que essas pseudociências, forjadas com a lógica da "magia natural", hoje reclamem um lugar ao lado da física e da biologia, que têm como pressuposto a separação radical entre as palavras e as coisas.

E, já que falamos, de palavras, coisas, rupturas e de esconde-esconde, vale lembrar que não foram os "philosophes" do século 18 nem Ferdinand de Saussure, já no século 20, os primeiros a sugerir ou postular a arbitrariedade do signo. Muito antes deles, em plena Idade Média, nominalistas já haviam ensaiado iluminados passos nessa senda. Mas, como ensina Foucault, a história das idéias não é um "continuum". Filósofos como Abelardo (1079-1142) e Guilherme de Ockham (c.1285-1347/49) se insurgiram contra Platão e o "establishment" de suas épocas e negaram existência concreta aos universais, isto é, a termos como "hominidade", "esconde-escondidade" etc., que nada mais são do que as formas platônicas. Para eles, a "hominidade" existia apenas como conceito em nossos intelectos. Na versão mais radical de Ockham, os universais são apenas nomes, ruídos, que aplicamos a coisas reais para designar semelhanças.

Abelardo coloca a questão de modo quase poético no problema do nome da rosa. Para ele, o nome da rosa, mesmo que não houvesse mais rosas, significaria alguma coisa em nossas mentes, ou a própria proposição "não existem rosas" deixaria de fazer sentido.

Pode parecer uma discussão sobre o sexo dos anjos, mas ela tem profundas implicações teológicas. Tome-se, por exemplo, a questão do pecado original. Pela doutrina oficial da Igreja Católica, a falta adâmica paira sobre toda a humanidade. Como ele pecou, a "hominidade" pecou; e cada homem individual precisa assim de salvação --a Igreja é necessária. Obviamente, a doutrina só faz sentido se houver algum grau de realidade nos universais. Se a minha participação na humanidade não existe ou não passa de um nome, não posso ser imputado pela bobagem que Adão cometeu lá atrás. Nessa hipótese, posso tranqüilamente deixar de assistir à missa.

De minha parte, fico com a solução proposta por Ian e David. Basta gritarmos: --"Adão salvo, um, dois, três" e podemos esquecer toda essa história de salvação, pecado original, horóscopo, homeopatia etc. para nos dedicarmos a ler os bons filósofos e, bem de vez em quando, brincar de esconde-esconde com as crianças.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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