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hélio schwartsman

 

30/11/2006 - 00h00

Fome de proibir

Ainda que com um certo atraso, acho que vale a pena comentar o caso da modelo que morreu em conseqüência de anorexia nervosa. A notícia teve amplo destaque na mídia e, como quase sempre ocorre nessas situações, já se articula um lobby, capitaneado por psiquiatras, para que se adotem por aqui medidas voltadas a neutralizar ou pelo menos mitigar os efeitos trágicos da chamada "ditadura da moda" entre jovens aspirantes a Gisele Bündchen. Nem estaríamos sendo originais. A Espanha e o México, por exemplo, já proibiram de desfilar manequins com um índice de massa corpórea (IMC) inferior ao considerado saudável.

Sou o primeiro a apoiar e incentivar debates que visem a promover a saúde pública. Precisamos, entretanto, escapar a raciocínios simplistas, que em geral contribuem mais para consagrar mitos do que para esclarecer as pessoas.

É certo que a prevalência da anorexia vem crescendo nos países industrializados, nos quais já atinge hoje 1% da população. Também dá para dizer que mulheres jovens de classes sociais mais elevadas e envolvidas com profissões ligadas ao corpo, como modelos, bailarinas e esportistas, são vítimas preferenciais. Daí não se segue que a anorexia e sua correlata, a bulimia, sejam moléstias exclusivas de dondocas e patricinhas, como alguns presumem.

Na verdade, essas patologias encerram mais mistérios do que supúnhamos até recentemente. Há uma corrente que pretende tirar a anorexia da esfera da psiquiatria para colocá-la no âmbito da clínica médica e quem sabe até da genética. Tal posição parece exagerada, mas convém dar uma espiadela nos argumentos dos que a advogam.

Um trabalho recentemente publicado no periódico "Archives of General Psychiatry" (2006;63:305-312) mostrou que o componente biológico da anorexia é bem maior do que se acreditava. O estudo, assinado por pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte e do Instituto Karolinska, de Estocolmo, investigou 31.406 pares de gêmeos suecos nascidos entre 1935 e 1958 --os sempre precisos registros suecos são o paraíso de qualquer epidemiologista-- e, entrevistando-os, verificou que a taxa de concordância da moléstia (as ocasiões em que ela afetou os dois indivíduos) foi muito maior nos gêmeos idênticos (56%), isto é, que partilham a totalidade dos genes e quase todo o ambiente, do que em gêmeos fraternos (5%), que têm em comum alguns genes e a maior parte do ambiente. Traduzindo, a pesquisa sugere que fatores biológicos são preponderantes em pelo menos 56% dos casos de anorexia. Talvez seja pouco para tirar a doença das mãos dos psquiatras, mas já basta para pelo menos relativizar o papel da tal "ditadura da moda".

Não estou sugerindo que agências de modelos, escolas e outros estabelecimentos nos quais é maior a probabilidade de encontrar jovens anoréxicas não tenham o dever de realizar um trabalho preventivo e estar sempre atentos a seu público, a fim de identificar casos da moléstia e encaminhá-los a especialistas. O tratamento da anorexia é difícil e, no longo prazo, a mortalidade chega a 10%. Além disso, ela freqüentemente está associada a outras patologias, como depressões graves e abuso de drogas, em especial dos remédios para emagrecer.

Parece exagero, porém, estabelecer peso mínimo para participar de desfiles ou tentar forçar "manu medica" mudanças nos padrões da moda, que, de resto, estão sempre cambiando por razões difíceis de apreender. Nos anos 90, as magérrimas de hoje não teriam muita chance. Se recuarmos ao Renascimento, perceberemos que o ideal de beleza correspondia a medidas que hoje julgamos roliças. Se voltarmos ainda mais, às estatuetas pré-históricas de deusas da fertilidade, depararemos com mulheres francamente obesas. Poupo o leitor de uma discussão sobre o juízo estético, mas parece óbvio que o drama de jovens com transtornos alimentares constitui ainda um enigma médico que não será resolvido com medidas autoritárias e de limitado alcance prático, que funcionam muito mais para aplacar consciências do que para reduzir a incidência da moléstia. De resto, magérrimas, mesmo que patológicas, assim como obesos mórbidos, tuberculosos e aidéticos, têm o direito de não ser discriminadas.

Todo comportamento envolve riscos. A rigor, viver envolve riscos. O que as pessoas precisam compreender é que, gostemos ou não, decisões têm conseqüências. E isso é inafastável. O que de melhor podemos fazer é tentar alertá-las (em especial os jovens) para os possíveis efeitos adversos de suas ações. Devemos ensinar que usar drogas é perigoso, que perseguir a qualquer custo as "medidas perfeitas" pode desencadear anorexia ou bulimia.

Não devemos, entretanto, esperar resultados milagrosos. O ser humano, sobretudo o jovem, é um otimista incorrigível. Ele sempre acha que o pior cenário, aquele visado pelas explicações de pais, educadores e médicos, não se materializará no seu caso. Freqüentemente tem razão. Álcool e drogas fazem um mal tremendo e viciam. Mas a grande maioria dos jovens que se dedicam a libações e fazem experimentações psicodélicas não se torna alcoólatra nem narcodependente. Para cada 12 etilistas existem 88 que ou não bebem ou são capazes de fazer uso não-patológico do álcool. (O dado de 12% de alcoólatras foi divulgado na semana passada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, o Cebrid, e deve ser visto como uma estatística conservadora. Levantamentos feitos a partir de entrevistas costumam subestimar o problema). A resposta para a questão, portanto, passa longe de proibir a bebida, assim como passa longe de proibir drogas, jogo ou moças magras de desfilar.

A vida é cruel e tem muito de loteria --genética, ambiental e até esportiva. Não será inventando mandingas autoritárias que conseguiremos mudar isso. Só o que podemos fazer é explicar honestamente as regras do jogo, seus perigos e torcer para que tudo dê certo.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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