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hélio schwartsman

 

19/04/2007 - 00h00

O mau selvagem

O homem é originalmente bom; é a sociedade que o corrompe. Trata-se sem dúvida de uma das maiores bobagens já proferidas na história da humanidade. O problema não é tanto que o bom Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) tenha concebido mais essa idéia maluca, mas sim que pessoas importantes nos meios intelectuais tenham acreditado nela ao longo de mais de dois séculos. Pior, ainda há quem ache que o cidadão genebrino está certo.

Não me considero um pessimista --muito pelo contrário, como se verá--, mas basta dar uma olhadela à nossa volta para chegar empiricamente à conclusão oposta: o homem é um bicho naturalmente ruim. Como ocorre com a maioria dos animais, coloca seus interesses acima de tudo e não hesita em usar a violência para impor sua, digamos, visão-de-mundo aos demais. Se há um rival no seu caminho para copular com uma fêmea, tende a aplicar a solução mais simples, que é eliminar fisicamente o comborço _desde que tenha, por suposto, os meios para tanto. O mesmo vale em relação a uma carniça de cabrito, uma framboesa madura ou qualquer outra iguaria pré-histórica.

E não parece haver muitas dúvidas de que essa seja uma disposição natural. Para prová-lo, basta observar duas crianças brincando (especialmente se forem dois meninos). Elas se provocam continuamente. Muitas vezes, a sucessão de desafios atinge o ponto crítico e degenera em pancadaria. Garotos podem ser terrivelmente cruéis uns com os outros, para não dizer sádicos mesmo. Rousseu, é claro, não tinha como saber disso, pois entregou os cinco filhos que gerou para a adoção (pelo menos é o que diz), no que constitui evidência adicional da perversidade, senão humana, ao menos rousseauniana.

Antes de prosseguir, peço que não me interpretem mal. Individualmente, somos todos capazes de atos de profundo e vil egoísmo, mas também de gestos daquilo que alguns chamariam de amor desinteressado. Acredito até que mesmo o pior facínora tenha tido seus momentos, talvez não de grandiosidade, mas de compaixão. No acumulado da espécie, entretanto, o balanço é negativo, como o atestam Auschwitz, os gulags, a Revolução Cultural e vários outros genocídios, passados, presentes e futuros.

Nesse contexto algo sombrio, onde encontro razões para o otimismo que mencionei algumas linhas atrás? A boa notícia é que, apesar de nossa natureza maligna, estamos aprendendo a nos conter. Há cerca de um mês, o psicólogo evolucionista Steven Pinker publicou na revista norte-americana "The New Republic" o artigo intitulado "Uma História da Violência" (o texto pode ser acessado no site da Fundação Edge), no qual pincela evidências de que, considerada a série histórica, estamos nos comportando melhor. Este é um tema caro a Pinker, que também o aborda em seu livro "Tabula Rasa" (este disponível em português).

Muito provavelmente por influência de Rousseau e alguns outros pensadores de esquerda, o "establishment" científico costumava ver as guerras do passado como menos mortíferas do que as modernas. Alguns pesquisadores chegaram a afirmar que os conflitos na Idade da Pedra eram apenas "simbólicos", e antropólogos "encontraram" povos que não "conheciam" a violência. Bobagem, é claro. Convicções podem facilmente nos cegar para a realidade.

Novos dados e análises, produzidos por autores como Lawrence Keeley e Stephen LeBlanc, mostram que os homens se massacram desde sempre e que antes o faziam com muito mais afinco.

Como bem observa Pinker, "na década de Darfur e do Iraque e logo após o século de Stálin, Hitler e Mao, afirmar que a violência está diminuindo pode parecer algo entre a alucinação e a obscenidade". E poderíamos muito bem acrescentar aqui um "na semana do massacre de Blacksburg". É evidente que, pelos números absolutos, o século 20 é, como o meu Corinthians, "o campeão dos campeões". Calcula-se que os conflitos deste período tenham matado algo em torno de 100 milhões de pessoas. Ocorre, entretanto, que os confrontos tribais do passado eram não apenas mais freqüentes que as guerras modernas como também matavam porcentagens muito maiores das respectivas populações. Se as taxas de morticínio verificadas entre os "bons selvagens" fossem aplicadas ao século 20, o saldo de óbitos excederia facilmente aos 2 bilhões.

De resto, com a evolução dos meios de comunicação, hoje registramos e damos destaque a qualquer escaramuça entre vizinhos. Até dois séculos atrás, povos inteiros podiam ser eliminados numa razia e ninguém jamais tomaria conhecimento. Ou melhor, ninguém senão antropólogos do século 21. É graças ao trabalho de alguns deles que estamos aprendendo que os selvagens não eram tão bons assim.

As cifras quase astronômicas do século 20 ao lado do bombardeio diário de notícias de guerra são o que basta para nos transmitir a falsa sensação de que estamos piorando em velocidades próximas às da luz.

É claro que não é assim. Provas extras de que estamos nos saindo melhor incluem a virtual extinção da escravidão e do sacrifício humano. Também estão em baixa em praticamente todos os sistemas jurídicos do mundo a tortura e mutilações. A própria pena de morte, embora ainda esteja longe de acabar, já não é em nenhum lugar aplicada para delitos menores ou crimes de opinião, ao contrário do que ocorria até um passado recente. As próprias guerras deixaram de ser vistas como meio legítimo de conquista de território ou propriedade.

Por que essas coisas estão acontecendo? Ninguém sabe ao certo, mas podemos pelo menos especular. Dá para, desde já, descartar mudanças naquilo que se convencionou chamar de natureza humana. Elas podem até estar ocorrendo, mas seus efeitos só seriam perceptíveis na escala das muitas dezenas de milhares de anos, não na de séculos. Parece mais fácil acreditar que outras propensões humanas, muito provavelmente de base biológica, estejam atuando para moderar nosso apetite pela barbárie. Eu mesmo já arrisquei alguns palpites nesse terreno na coluna "Cultura da violência ", de 2003.

A linha de explicação que me parece mais convincente é aquela pela qual estamos equipados não apenas com meios de matar nossos semelhantes mas também com instrumental para colaborar com eles. Num contexto de anarquia, no qual o pressuposto é o de que todos tentarão a todo instante tomar o que é meu, a lógica recomenda que eu me antecipe a esses ataques, lançando-me contra meus vizinhos antes que eles o façam. Se, por outro lado, eu consigo estabelecer com meus próximo uma política de cessação mútua de hostilidades, nós podemos facilmente evoluir para uma situação de cooperação. Aqui, cada um de meus vizinhos deixa de ser uma ameaça para tornar-se aliado potencial na hora de construir um açude ou criar um sistema de defesa contra outras tribos. Redes cooperativas são tão eficientes que atingem muito rapidamente o ponto de fixação.

Ao que parece, cada vez mais grupamentos humanos estão conseguindo passar da barbárie para um estado de relativa organização social. Um bom indicativo disso seria a constante queda das taxas de criminalidade nos países desenvolvidos. Para que possamos viver sem tanto medo, concordamos todos em abrir mão do direito de atacar primeiro em favor de uma autoridade maior --o Estado--, que passa a ser o único autorizado a usar da violência de forma legítima. Hobbes, e não Rousseau, estava certo. Esse raciocínio começa aos poucos a valer não apenas no âmbito dos indivíduos como também dos Estados. Neste caso, entretanto, não há um poder neutro que faça as vezes de Estado dos Estados. Não obstante, vai se desenvolvendo uma espécie de sensibilidade da comunidade internacional, que, quando gravemente ultrajada, até despacha uma espécie de polícia internacional que são as tropas que atuam sob auspícios da ONU.

A prosseguir a tendência atual, dentro de mais alguns séculos, pessoas e países estariam tão acostumados com o novo "modus operandi" das sociedades que poderíamos cogitar de reduzir drasticamente o tamanho de nossas polícias e exércitos. Eliminar essas instituições, contudo, parece um sonho impossível, pois sempre haverá alguns (pessoas e países) dispostos a romper o acordo de convivência pacífica. É preciso ter meios de reagir a eles, ou a situação de anarquia poderá facilmente reinstalar-se.

Seria importante, como quer Pinker, tentar descobrir com mais detalhe o que fizemos de certo ao longo dos últimos séculos para reduzir a violência. Saber exatamente o que está acontecendo seria uma forma de nos conhecermos melhor, além de aumentar nossa capacidade de preservar a paz. Seja como for, podemos desde já descartar a idéia rousseauniana de que é a sociedade quem corrompe o homem. As evidências disponíveis apontam exatamente o contrário: é a civilização que está conseguindo tornar o homem um bicho menos ruim.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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