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hélio schwartsman

 

11/10/2001 - 00h00

Drogas: cuidado com o pipoqueiro

Por contingências da vida, estive, na semana passada, em meu primeiro simpósio médico. Era o 56º Congresso da Sociedade Brasileira de Cardiologia, que teve lugar em Goiânia. No andar de cima do novo e imponente centro de convenções, aconteciam as comunicações científicas propriamente ditas. Eram palestras, conferências e mesas-redondas, que abordavam os mais variados aspectos da cardiologia, de técnicas operatórias a novos fármacos, passando pelo papel dos exercícios físicos na prevenção primária dos "desfechos cardíacos", que, como vim a descobrir, é o eufemismo normalmente empregado para morte súbita e infarto agudo do miocárdio, o popular IAM.

Havia também espaço para ciência de ponta, como a busca de marcadores genéticos para certas moléstias, e até discussões improvisadamente filosóficas, como os limites da estatística e, por conseguinte, da chamada medicina baseada em evidências. Mas não é o andar de cima que me interessa agora.

No térreo do centro de convenções da capital goiana se instalaram os estandes dos laboratórios. Eu já lera muito e até já escrevera sobre o problema das relações promíscuas entre médicos e a indústria farmacêutica. Mesmo assim, o que vi me deixou chocado.

É difícil definir em poucas imagens o que acontecia lá embaixo. Era um pouco um cassino, porque muitos estandes apostavam em prendas para atrair os médicos. Havia grandes roletas cheias de luzes e nomes de drogas piscantes. Bastava "escolher" um dos fármacos, apertar o botão e torcer para que a roda parasse no remédio selecionado.

Os prêmio distribuídos em várias modalidades de jogo podiam ter valor não-desprezível, como DVDs. E, para que ninguém pudesse afirmar que a habilidade era desprezada, uma importante grife patrocinava emocionantes corridas de autorama, cujos vencedores também eram ricamente galardoados.

Ora, como nem todos os médicos são jogadores compulsivos, havia laboratórios que preferiam chamar a atenção contratando simpáticas e formosas modelos desconfio de que eram concomitantemente atrizes que se incumbiam de distribuir o material de propaganda. Algumas suavam o maiô demonstrando equipamento cardiológico em esteiras e bicicletas ergométricas.

Obviamente, havia também atrativos mais universais, notadamente comes e bebes. Sucos, refrigerantes, café, picolés, pipoca é sempre bom ter cuidado com os pipoqueiros, panquecas, frutas, tudo era farta e graciosamente oferecido pelos laboratórios.

Na hora do almoço, caprichados sanduíches McDonald's inclusive eram distribuídos a todos os que se dispusessem a assistir a palestras em que médicos apresentavam trabalhos científicos cujos resultados eram favoráveis à droga do laboratório que patrocinava aquela "conferência-satélite".

Os laboratórios menos ricos contentavam-se em regalar os congressistas com coisas mais simples, como canetinhas, papel para rascunho ou grandes sacolas para que os participantes pudessem levar embora tudo o que ganhavam no térreo.

Talvez eu esteja sendo injusto. Os médicos que foram ao Congresso pagaram um bom dinheiro para ampliar seus conhecimentos e reciclar-se. Constituem uma elite e merecem reconhecimento. Ainda assim, o nível do assédio dos laboratórios me surpreendeu.

A ofensiva, à primeira vista, pareceu-me exagerada e de retorno incerto. Eu, pelo menos, gostava de acreditar que um médico, isto é, alguém que passou pelo menos seis anos numa universidade e tem um certo treino científico, não se deixaria influenciar por propaganda escancarada. Se ele prescreve uma droga, é porque o paciente precisa dela e não porque um diretor de marketing de uma grande empresa decidiu levar mulheres bonitas ao último congresso.

Por outro lado, o setor farmacêutico é um dos mais competitivos do planeta. Os diretores de marketing que atuam na área não nasceram ontem. Se todos os laboratórios apostam nessa estratégia, é porque ela traz resultados. É inafastável então a suspeita de que podemos estar tomando remédios menos porque precisemos deles e mais porque existe uma formidável pressão mercadológica para que eles sejam prescritos.

É evidente que alguém que tenha seus níveis séricos de LDL, o mau colesterol, na casa dos 300 mg/dl precisa usar drogas para reduzi-los. A medicina, desde a segunda metade do século passado, funciona. Sabemos com segurança que altos níveis de LDL estão associados a coronariopatias. A questão se torna mais complicada quando temos um LDL de, digamos, 150 ou 160. Ao que parece, convém baixá-los para a casa dos 130. Devemos, nesse caso, usar drogas? Não é uma decisão trivial nem sem interesse para a indústria farmacêutica. O número de terráqueos nessa situação se conta na casa do bilhão, vários milhões dos quais com recursos financeiros para tomar uma droga pelo resto de suas existências.

Assim, se o consenso médico diz que o limite máximo para o LDL deve estar próximo dos 130 e não mais dos 150 ou 160, essa é uma decisão que, para os laboratórios, vale muitos dólares. Não estou, obviamente, sugerindo que todas as pesquisas médicas são maquiavelicamente manipuladas pelos laboratórios. Mas, se eles fazem o que fazem no térreo, temos razões para preocupar-nos com o que fazem também no andar de cima. E é certo que fazem alguma coisa.

A solução mais óbvia seria proscrever a indústria dos congressos e de todas as etapas da produção científica. Só que isso é impossível. Embora toda nova droga parta do conhecimento produzido pela pesquisa básica, que é majoritariamente financiada com verbas públicas dos países ricos, a indústria deposita bilhões de dólares nas etapas finais de desenvolvimento dos fármacos. É um dinheiro que faz diferença, mesmo para nações do Primeiro Mundo.

Num país periférico como o Brasil, os laboratórios ainda desempenham o papel de fornecer a muitos médicos a pouca informação nova que eles recebem. É um absurdo que a reciclagem fique, em muitos casos, a cargo dos laboratórios, mas essa é uma triste realidade.

Assim, tentar eliminar os aspectos mais óbvios da promiscuidade da relação médico-laboratório apenas atiraria para as sombras a parte deletéria desse jogo. Pesquisas enviesadas continuariam a ser financiadas e publicadas e os poucos pontos saudáveis do marketing dos laboratórios desapareceriam.

É preciso, portanto, trazer um choque de transparência para o modo como a indústria e a classe médica interagem. Alguns passos nesse sentido já foram dados, mas eles são ainda tímidos. Devem ser ampliados. Mais do que isso, é preciso reforçar a formação científica do médico, para que ele pelo menos não seja vítima das manipulações mais grosseiras.

Quando eu engulo uma pílula por ordens médicas, quero o máximo de garantias de que o estou fazendo com base em conhecimento científico, não porque a droga é produzida pelo laboratório que mandou as meninas mais bonitas para o último congresso ou sorteou o DVD mais bacaninha.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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