Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

hélio schwartsman

 

01/11/2001 - 00h00

Teratogenia legal

Passados quase 20 anos do nascimento do primeiro bebê de proveta brasileiro, o Congresso finalmente discute uma legislação específica para a reprodução assistida (RA). Como tudo o que diz respeito à vida, esse é um daqueles temas delicados, em que necessidades objetivas se misturam com crenças pessoais para engendrar preconceitos.

O projeto em apreciação, que ainda tramita nas comissões do Senado, é de autoria de Lúcio Alcântara (PSDB-CE). O texto, que já não era muito a meu gosto, deve ser piorado ainda mais pelo lobby conservador, capitaneado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Devo frisar que admiro o trabalho da CNBB em muitas áreas, mas, quando o assunto é sexo e saúde, temo que a conferência seja a pior conselheira que se pode encontrar.

Vale a pena pincelar e comentar alguns pontos do projeto de lei. Fica vedada, por exemplo, a utilização de RA por mulher que já tenha passado da idade reprodutiva. Não sou um entusiasta da transformação de asilos em maternidades, mas me parece que a proibição constitui grave ofensa à igualdade entre homens e mulheres diante da lei. Um homem, convém lembrar, em princípio não conhece limites etários para a paternidade. Raciocínio idêntico vale para mulheres que optem pela adoção.

Os que defendem o veto costumam recorrer a uma suposta sabedoria da natureza, que prudentemente teria limitado o perído fértil das mulheres. Antes de mais nada, a natureza pode ser tudo menos sábia. Não faz muito sentido imputar-lhe categorias antropomórficas. E, se fosse lícito fazê-lo, termos como "indiferente", "fria" lhe cairiam melhor.

Se fosse para respeitar a sabedoria da natureza o homem jamais deveria ter inventado o avião. A RA tampouco deveria ter sido desenvolvida e o próprio argumento dos que defendem limitá-la perderia quididade. Trocando em miúdos, se estamos discutindo a possibilidade de vedar algumas mulheres de recorrer à RA é porque pretendemos facultá-la a outras, o que já é uma admissão de que a natureza pode e deve ser modificada, ou deveríamos aceitar a infertilidade "natural" de todas as mulheres.

Esse tom de "devemos-sempre-respeitar-a-sábia-mãe-natureza" percorre todo o projeto e é o principal elemento a torná-lo uma peça bastante idiota. Fica vedada, por exemplo, a pré-seleção sexual do embrião, exceto para prevenir doenças hereditárias ligadas ao sexo, como hemofilia. Qual é o sentido em proibir a livre escolha do sexo?

Uma disposição como essa talvez fizesse sentido em lugares como a China, onde crianças do sexo masculino são muito mais valorizadas do que as do feminino, a ponto de as bebezinhas se tornarem vítimas frequentes de infanticídio. Não sendo esse o caso do Brasil nem havendo a possibilidade de a "popularíssima" fertilização "in vitro", que custa de R$ 8.000 a R$ 20 mil, criar alterações demográficas que inviabilizem o futuro da humanidade, não há nenhum motivo racional para impedir a pré-seleção do sexo da criança.

Outro ponto complicado é a limitação da quantidade de embriões que podem ser implantados no útero. O texto de Alcântara, obedecendo a resolução do Conselho Federal de Medicina, fixa esse número em quatro, mas o relator do projeto na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, Tião Vianna (PT-AC), pretende reduzi-lo a dois, para evitar o "desperdício".

Mais uma vez, parece operar aqui a idéia naturalista de que o embrião é de fato algo vivo, que deve ser de alguma forma protegido. Ou ele é vivo, como quer, por exemplo, a Igreja Católica, e destruir um único zigoto já seria a assassinato, ou ele ainda não é um sujeito de direitos, não havendo, portanto, razão para nos preocuparmos em evitar "desperdícios".

Quando se considera que a decisão de reduzir o número de transferências para no máximo dois pode reduzir significativamente as chances de sucesso da tentativa de RA, verifica-se que a própria idéia de limitar trabalha contra a racionalidade do processo. Aceitando-se a tese de que o embrião ainda não é um ser vivo que deve ser protegido pela lei e não aceitá-la é quase que inviabilizar as técnicas de fertilização "in vitro", é evidente que a decisão de quantos zigotos implantar deve caber aos interessados, que são os pais e os médicos.

Fica a sensação de que operou aqui uma negociação meio maluca, que procurou conciliar os interesses dos defensores da RA com os da Igreja Católica. É como se a igreja, diante da impossibilidade de simplesmente proibir a RA, tivesse cedido a uma teologia de resultados e passado a "jogar pelo empate". O produto final é uma lógica sem nexo.

O projeto padece ainda de vários outros defeitos. Ele prevê, por exemplo, a possibilidade de criança gerada por doação de gametas (óvulo ou esperma) exigir o reconhecimento da paternidade pelos doadores. Não é preciso ser um prêmio Nobel de Economia para concluir que a medida constitui sério desincentivo à doação, podendo, talvez inadvertidamente, acabar com ela.

Mesmo com todos esses problemas, sou a favor de um texto legal específico para a RA. Ela é capaz de gerar situações incomuns, principalmente em direito de família, para as quais analogias e jurisprudência não trarão as melhores respostas.

Mas uma lei para regular esse gênero de matéria precisa ser, antes de mais nada, um mecanismo racional, que não limite ociosamente tecnologias sempre em evolução. É fundamental aqui evitar que preconceitos e lobbies altamente teratogênicos se sobreponham à razão.

A Igreja Católica tem todo o direito de expor suas posições e recomendar aos católicos o que entende como a verdade. Mas não tem o direito de impor suas visões discutíveis, como todas as visões ao conjunto da população.

Aliás, tenho a impressão de que a maior parte dos problemas do mundo começa quando um grupo tenta impor a sua vontade a outro.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página