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hélio schwartsman

 

18/04/2002 - 00h00

A Venezuela e o estupro da democracia

A acreditar no que li na imprensa, o golpe contra o presidente venezuelano, Hugo Chávez, era inevitável e foi merecido. O mandatário havia se indisposto com todos os setores da sociedade, dos militares à Igreja Católica passando, evidentemente, pelo povo. Seu governo já havia acabado; faltava apenas o tiro de misericórdia.

Raras vezes a mídia global quebrou a cara assim tão flagrantemente. O exemplo mais gritante foi, também por razões industriais (horário de fechamento), o das grandes revistas brasileiras. No sábado já estavam velhas. No domingo, quando a maioria dos assinantes recebe seu exemplar, soavam cômicas. Hugo Chávez não só sobreviveu a uma tentativa de golpe como chegou a ser deposto para, dois dias depois, voltar nos braços do povo, se é lícito usar essa expressão tão fora de moda.

É claro que, se eu tivesse escrito um comentário sobre o assunto na quinta ou na sexta da semana passada, provavelmente teria escrito algumas das mesmas bobagens, mas não todas. Em primeiro lugar, não teria aplaudido um golpe de Estado. Tampouco teria tentado subsumir todas as complexidades de um país como a Venezuela em dois ou três juízos econômicos temperados com alguns preconceitos sociais e muita ideologia. Que a escorregada geral sirva de alerta: o mundo é um lugar mais complicado do que gostamos de acreditar.

Agora está claro que o presidente Chávez não estava tão isolado quanto a imprensa o pintava. Nunca é demais lembrar que os meios de comunicação privados venezuelanos, de onde partiam as "informações", eram um dos principais focos de oposição a Chávez, o que deveria bastar para tornar suspeitas as informações que divulgavam.

Não devemos, evidentemente, cair no erro oposto e acreditar que o presidente venezuelano é um herói das massas e conta com o sólido apoio da "maioria silenciosa", dos "descamisados". Seria temerário considerar que a tentativa de depô-lo não passou de um complô orquestrado por um pequeno grupo de meia dúzia de empresários e militares extrema direita, que contava apenas com o apoio da Casa Branca. Se essa turma achou que a quartelada tinha chances de prosperar, podemos inferir algum grau de insatisfação dos venezuelanos com o governo.

Em todo caso, não devemos acreditar, como queria a imprensa "burguesa", que o presidente Chávez foi capaz de brigar com todos os setores da sociedade ao mesmo tempo.

Até acredito que a quartelada teria triunfado se os golpistas fossem menos ineptos, se tivessem tentado preservar pelo menos uma fachada de democracia. Não foi o que fizeram. O primeiro e enorme equívoco foi instalar Pedro Carmona na Presidência. Ora, Carmona é apenas o empresário que liderava a oposição a Chávez. Não detinha nenhum mandato nem posto no universo das instituições. "Mutatis mutandis", seria como se os militares brasileiros derrubassem um presidente e, ignorando toda a linha sucessória prevista na Constituição, pretendessem instalar o presidente da Fiesp no poder. Só colou em Washington e em alguns ramos da imprensa.

E as coisas ficaram ainda piores quando Carmona, ostentando o título de "presidente interino", mandou fechar o Congresso e destituir os juízes da Suprema Corte. Como se não bastasse, dava sinais de que não respeitaria acordo com militares que previa um exílio no estrangeiro para Chávez, que é tenente-coronel dos pára-quedistas, e sua família. Aqui, ele feriu o "esprit de corps" das Forças Armadas.

Houve está comprovado um dedo de Washington por trás dessa tentativa de golpe. Se não chegou a haver um apoio muito ativo, material, houve, pelo menos, incentivos morais. Os EUA, e a administração Bush em particular, nunca gostaram muito do líder venezuelano. No presente momento, em que os preços do petróleo causam apreensão nos mercados, uma queda de Chávez teria sido um refresco para Wall Street e a recuperação da economia dos EUA. A Casa Branca não escondeu sua satisfação com a notícia da "renúncia" do presidente. Quebrou deliciosamente a cara.

O otimista pode até regozijar-se. A América está mais democrática. Não muito tempo atrás, o Pentágono teria enviado um porta-aviões ao litoral venezuelano para garantir o sucesso do "Putsch".

Confesso que nutro uma certa simpatia pelo condutor da "Revolução Bolivariana", mas sou forçado a admitir que essa boa disposição não tem nenhuma base racional. Numa análise fria, Chávez é um populista de esquerda. É uma figura perigosa. Nunca é demais lembrar que, em 92, ele liderou uma frustrada tentativa de golpe. Mesmo quando manda, caminha sempre perigosamente perto da ruptura institucional. Embora, desde que foi eleito, não tenha atentado contra a democracia, opera em suas zonas cinzentas.

Eu explico: quando um presidente recém-eleito propõe mudanças na regra do jogo, mas toma o cuidado de as fazer aprovar por referendo popular, ele tecnicamente observa a liturgia democrática, mas pode muito bem a estar violando, a golpes de casuísmos. É a versão política do "estupra, mas não mata".

Trata-se, sem dúvida, de um dos limites da democracia, com o qual temos de conviver. No fundo, não estamos muito longe da crítica que lhe fazia Platão: a democracia é vulnerável demais a demagogos. Numa tradução bem livre: o povo é burro, volúvel e se deixa levar por populistas, então a democracia, que é a expressão da vontade do povo, não é confiável. A diferença entre nós e Platão é que o filósofo grego tinha uma alternativa à democracia. Só que ele podia, e nós, não. Ele estava certo de possuir a verdade. Nós só estamos convictos de que não a conhecemos. É razão bastante para apostarmos na democracia, mesmo com todos os seus limites e defeitos.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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