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hélio schwartsman

 

13/03/2003 - 00h00

Droga e violência

Não sou muito otimista em relação ao problema da violência. O caso do Rio de Janeiro, que mais uma vez requereu a intervenção de nossas notáveis Forças Armadas é, para falar difícil, apenas um epifenômeno da questão mais ampla do tráfico de drogas e do crime organizado.

Acho que, enquanto existirem homens vivendo em sociedade, haverá criminosos, aquela parcela normalmente diminuta da população que adota, como estratégia de sobrevivência, um estilo que despreza as normas e convenções sociais.

Isso não significa, é claro, que nos devamos resignar e, aceitando a violência como inevitável, trancar-nos em casa ou armar-nos até os dentes e sair por aí, à maneira de Bush, impondo a nossa lei e a nossa ordem.

Se a sociedade engendra comportamentos anti-sociais, ela também produz remédios ainda que apenas anódinos para esses males. Quem duvida pode olhar para os países do Primeiro Mundo (e mesmo alguns de Terceiro), que apresentam índices de violência incomparavelmente mais baixos que os brasileiros. Enquanto na França a taxa de homicídios é de 2,4 por 100 mil habitantes, no Brasil ela é quase dez vezes maior, atingindo 23,5. Nos EUA, a mais embrutecida das nações industrializadas, o número é de 6,6. A Colômbia, se isto serve de consolo, tem taxa bem maior: 60 por 100 mil.

Em termos macroeconômicos, portanto, a receita para baixar a violência é muito simples. Basta que evitemos o caminho colombiano da guerra civil e nos tornemos um país rico. Essa solução se torna menos prática quando se considera que o Brasil não chegará, nos próximos 20 ou 30 anos, ao nível de desenvolvimento social verificado no Primeiro Mundo.

É preciso, portanto, procurar respostas num plano mais realista. Posso estar redondamente enganado, mas acredito na tese de que as drogas respondem por boa parte da violência gerada pelo crime organizado. É evidente que, se não existissem entorpecentes ilícitos, as quadrilhas continuariam existindo, só que se dedicando a outras atividades delituosas. Ainda assim, acho que o tráfico está entre as mais rentáveis e menos expostas das especialidades criminais. Mais do que isso, a produção, distribuição e comercialização de drogas pressupõe uma rede capilarizada, que envolve um grande contingente de pessoal, distribuído em vários níveis hierárquicos. A coisa começa com o plantador de coca no interior da Bolívia, sobe aos bandidos que preparam a droga em laboratórios clandestinos, vai até o grande traficante internacional e volta a descer, até chegar ao exército de garotos de nove, dez anos que funcionam como "aviões" nos morros cariocas e ao consumidor final. Nos interstícios dessa ampla estrutura, surge espaço para a corrupção de autoridades, contrabando de armas e de produtos químicos que serão usados no processamento da droga.

Deve-se atentar para o fato de que são poucas as atividades ilícitas que mobilizam tantos atores. No caso do sequestro, por exemplo, como o segredo faz a diferença entre o sucesso e o fracasso do golpe, dificilmente uma operação envolve mais de uma dezena de pessoas. Daí fica difícil imaginar que sequestros e a maioria dos delitos mais comuns a exceção talvez seja a pirataria possam favorecer o surgimento de estruturas tão amplas e tão profundamente incrustadas na sociedade quanto as propiciadas pelo narcotráfico.

Evidentemente, quanto mais poderosas se sentirem as quadrilhas mais ousadas tenderão a ser seus atos. Vinte anos atrás, episódios como o da baderna promovida por traficantes no Rio seriam inimagináveis. Infelizmente, elas têm-se sentido bastante poderosas.

Em termos estritamente lógicos, a saída para minorar o problema da violência associada ao narcotráfico é a legalização das drogas. Perceba o leitor que não estou falando em descriminalizar ou ser tolerante para com os usuários, mas de legalização mesmo. Maconha, cocaína e heroína seriam tributados como bebidas alcoólicas e cigarros e poderiam ser vendidos em pontos específicos.

Há quem afirme que essa "solução" é apenas semântica: se o problema são as drogas ilegais, basta que as tornemos legais e o problema deixará de existir. Esse efeito linguístico é inescapável, mas estou convencido de que uma eventual legalização das drogas reduziria o poder e a violência do traficante.

A pergunta passa então a ser: se a solução é assim tão simples, por que não a adotamos antes? Infelizmente, não há nada de simples na legalização dos entorpecentes. Ela poderia significar uma verdadeira catástrofe para a saúde pública, pois é consenso que a liberação tenderia a aumentar os níveis de consumo.

Para efeito de comparação, deve-se lembrar que, segundo o Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), 68,7% da população brasileira usa álcool com alguma regularidade; 11,4% tornaram-se dependentes. Já a cocaína, foi experimentada ou é usada por apenas 2,3% dos brasileiros; menos de 1% desenvolveu dependência. É evidente que, se o número dos usuários de cocaína ou qualquer outra droga pesada subir descontroladamente, explodirá o de dependentes, com graves prejuízos para a saúde do indivíduo e para a sociedade.

Para ilustrar o que digo, vejamos o caso do álcool, que é uma droga legal. De acordo com várias pesquisas realizadas nos anos 90 e que foram citadas na 1ª Conferência Internacional de Álcool e Redução de Dados, realizada no ano passado em Recife, 39% das pessoas envolvidas em ocorrências policiais beberam em excesso; de 20% a 25% dos acidentados no trabalho consumiram álcool; 61% dos acidentes de carro foram provocados pela bebida; 75% das vítimas fatais de acidentes de carro tinham bebido; 40% das faltas ao trabalho são provocadas pelo álcool.

Não é só. Dados do Ministério da Saúde mostram que, no Brasil, no triênio 1995-97, o alcoolismo ocupava o quarto lugar no grupo das doenças mais incapacitantes. Em 1996, a cirrose hepática de etiologia alcoólica foi a sétima maior causa de óbito na população acima de 15 anos.

É claro que a cocaína e a heroína não produzem cirrose, mas provocam uma série de outras moléstias tão ou mais mortíferas. Se, com uma eventual legalização, o total de pessoas com problemas de dependência química de drogas ilícitas, que hoje é de menos de 1% da população, saltar para algo próximo dos 10%, o contingente de alcoólatras, haverá o caos no sistema público de saúde e duras provas para a sociedade. Vale lembrar que os mais jovens tendem a ser os mais afetados.

A dura verdade é que, por maiores que sejam os investimentos em repressão aos entorpecentes ou em educação preventiva, as drogas sempre vão existir. Muitos as experimentarão e, em seguida, as abandonarão sem maiores dificuldades ou seguirão fazendo uso apenas eventual, não patológico. Mas, uma fração dos que experimentam, por razões que a ciência ainda não sabe explicar direito, desenvolverá dependência, independentemente de programas de prevenção. Isso é inelutável.

A atitude mais sábia, diante do problema no fundo insolúvel, me parece ser a de caminhar paulatinamente para a legalização, evitando ou reduzindo o risco de haver uma explosão no consumo. Começamos com a descriminalização do uso e, aos poucos, sem poupar esforços no campo da educação, da prevenção (ainda que apenas para desencargo de consciência) e da redução de danos, seguiremos para a liberação completa. Isso não resolve, é óbvio, o problema das drogas, mas pode reduzir a enorme violência hoje associada ao narcotráfico. No dia em que as drogas estiverem legalizadas, o poder do traficante não será maior do que o do dono de botequim.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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