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hélio schwartsman

 

19/11/2009 - 00h13

De apagões e responsabilidades

Não me sinto muito confortável na posição de defensor do governo, mas não dá para comparar o apagão de Lula com o de FHC.

Em 2001, o que tivemos foi um problema crônico de geração de energia que derrubou o PIB em três pontos percentuais e despertou a justa ira da população. Em 2000, vínhamos crescendo a uma taxa de 4,3% ao ano, que passou a 1,3% após a imposição do racionamento. Evidentemente, ocorreram prejuízos e demissões que podem ser diretamente atribuídos à barbeiragem elétrica.

Segundo relatório divulgado em julho pelo Tribunal de Contas da União, em dinheiro vivo a imprevidência custou R$ 45,2 bilhões, dos quais 60% foram pagos pelos consumidores na forma de aumentos na conta de luz (o seguro-apagão) e o restante pelo contribuinte, através de aportes do Tesouro a várias empresas. O desastre só não foi maior porque boa parte desse dinheiro se converteu nos investimentos de que o setor se ressentia havia anos.

Agora, assistimos ao desligamento, por razões ainda não esclarecidas, da rede de transmissão, um evento que durou pouco mais de cinco horas. Como se deu à noite, horário em que a maioria das indústrias e do comércio não funciona, seu impacto sobre o crescimento da economia ficará entre o nulo e o irrisório. Se o percalço não se converter num hábito da gestão petista e nada indica que se tornará, o assunto estará devidamente esquecido dentro de poucas semanas. Até onde minha vista alcança, a consequência mais duradoura da desventura elétrica lulista deverá ser um súbita alta na taxa de nascimentos daqui a nove meses.

Como se vê, é só por contiguidade semântica e comodidade jornalística que chamamos aos dois fenômenos de "apagão".

E receio que meu "encômio" ao governo se encerre aqui. Embora não tenha sido capaz de produzir um desastre econômico tão estrepitoso como o de FHC, a atual administração pôs os pés pelas mãos na hora de lidar com a crise. Em vez de tentar descobrir o que aconteceu e relatar honestamente os fatos à população, diferentes setores do lulismo lançaram-se numa operação de propaganda em que tudo o que importava era lançar a responsabilidade para os céus, poupando o presidente, Dilma e de preferência também o ministro das Minas e Energia, o peemedebista Edison Lobão.

É engraçado como a gestão Lula chama para si a responsabilidade por tudo de bom que acontece no país, mesmo que se trate de fato absolutamente fortuito, a exemplo da cheia dos reservatórios, e a repele com veemência quando o assunto é menos abonador, ainda que as marcas do batom figurem na cueca, como se viu nos casos do mensalão e do dossiê dos aloprados. Sei que essa é mais ou menos a tendência natural de cada um de nós. Gostamos de valorizar nossos próprios feitos e minimizar nossos erros, mas para tudo deveria haver um limite. Acho que até meus filhos de sete anos corariam se tentassem me convencer de que a competente faxina em seu quarto é obra deles e não da empregada ou de que a janela quebrou "sozinha" enquanto eles jogavam bola ao lado.

De resto, o incidente elétrico revela que oito anos e R$ 45 bilhões depois, o setor continua vulnerável. Mesmo que a causa de tudo tenha sido a improvável ocorrência de três raios quase simultâneos sobre três linhas diferentes de transmissão gerenciadas por Furnas, ainda assim há megawatts a evoluir na área de relações públicas. Segue-se um retrato do governo Lula: o ministro das Minas e Energia diz uma coisa, é categoricamente desmentido pelo pesquisador sênior de um outro órgão oficial, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e tudo fica como está. Pessoalmente, inclino-me mais para as explicações do cientista do que para as do político.

Acho que José Serra teve mais azar. Enquanto ainda "celebrava" o apagão lulista, um trecho de seu Rodoanel desabou sobre transeuntes. Era uma sexta-feira 13. O pior é que, neste caso, nem dá para tentar empurrar a culpa para os céus.

E, já que mencionamos tucanos, petistas, versões e fatos, acho que vale tecer aqui algumas considerações sobre o verdadeiro Fla-Flu que está se tornando a política partidária nacional. As coisas ainda vão piorar bastante até outubro, quando elegeremos um novo presidente.

Houve um tempo em que acreditei que boas intenções e integridade política faziam a diferença. Provavelmente fazem, mas apenas no nível do indivíduo. Quando juntamos muita gente, como é inescapável no caso de partidos e administrações, os vícios e virtudes representativos da humanidade acabam aparecendo com frequências semelhantes, independentemente das cores ideológicas do grupo que analisemos. Daí que hoje desconfio de legendas que se proclamam essencialmente mais puras ou mais competentes do que seus adversários. Sobretudo em política, não existem mocinhos e bandidos (e minha tentação aqui é dizer que só há ladrões, mas deve haver um limite até para o saudável ceticismo).

Se o Brasil hoje começa a despontar como país do presente e não mais de um futuro que nunca chega, isso ocorre não por causa do PT ou do PSDB, mas apesar deles. O responsável mais verossímil pelo aparente sucesso (não nos esqueçamos de que tudo pode não passar de uma bolha) é a perseverança de uma série de administrações na rota da responsabilidade econômica. Depois que renunciamos às pajelanças e esperamos estoicamente pelos resultados, eles começaram a vir. É um processo extremamente complexo e cheio de idas e vindas, mas que foi mantido no essencial. Ele teve início no começo dos anos 90 com Collor e resistiu ao impeachment do então presidente, a Itamar Franco, ao apagão de FHC e ao mensalão.

Considero um exercício meio besta tentar definir o quinhão de cada governo nesse bolo. Como sou frequentemente instado a fazê-lo, acho que Lula teve mais sorte do que FHC. Pegou no início uma conjuntura internacional extremamente favorável e teve o mérito de não desperdiçá-la. O tucano provavelmente teria surfado na mesma onda, se não fosse justamente o apagão. São as ironias do destino.

De todo modo, é da regra do jogo que Lula contabilize como obra sua os processos que frutificam sob a sua gestão, ainda que de responsabilidade coletiva ou produzidos pelo acaso. O próprio FHC beneficiou-se de algo semelhante, quando converteu em votos presidenciais o sucesso do plano Real e usou os saldos de sua popularidade para aprovar a emenda da reeleição.

Apesar de os apagões de FHC e Lula serem incomensuráveis, quanto mais olho mais julgo parecidas as administrações, no que elas têm de ruim e de bom. Vale lembrar que estragar tudo é sempre possível, como provaram os Kirchner na Argentina.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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