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hélio schwartsman

 

03/06/2010 - 00h02

A lógica das tribos

A abestalhada interceptação, pela Marinha israelense, da flotilha que deveria levar ajuda humanitária a Gaza é um bom instantâneo do conflito no Oriente Médio.

Desde 2000, com o colapso das conversações de paz em Camp David (EUA) entre israelenses, liderados pelo então primeiro-ministro Ehud Barak, e palestinos, sob o comando de Iasser Arafat, a situação vem se deteriorando lenta, mas resolutamente. De lá para cá, a sociedade israelense decretou não haver interlocutores confiáveis do lado palestino e desistiu de engajar-se seriamente em qualquer esforço de entendimento. Vez por outra, quando fortemente pressionado por Washington, o premiê de plantão fala em retomar o processo de negociações, mas apenas para voltar a congelá-lo na primeira oportunidade.

Numa única ocasião, sob o governo de Ariel Sharon, a maioria dos israelenses acreditou que a retirada unilateral de Gaza poderia ser o começo de uma solução. Hoje, entretanto, interpreta-se a iniciativa como um desastre. A saída dos soldados permitiu ao grupo extremista Hamas assumir o controle do território, do qual lança com constância saraivadas de foguetes Qassam contra cidades israelenses. Em 2008, por exemplo, foram 1.750 disparos, uma média de 4,8 por dia. Não são ataques particularmente mortíferos. Na última década, o total de mortos pelos Qassam não passa dos 20. Mas esses lançamentos contínuos colocam o governo sob enorme pressão popular para agir. Ninguém consegue viver em normalidade com cargas explosivas voando sobre sua cabeça.

Por essas e por outras, os israelenses hoje apostam em manter o "statu quo". Limitam-se a administrar a crise. Constroem o muro para evitar homens-bombas, ampliam os assentamentos na Cisjordânia e vão controlando, como podem, as ações do Hamas. Para isso, valem-se de estratégias moralmente duvidosas, como colocar sob cerco 1,5 milhão de palestinos em Gaza ou destruir as casas de supostos terroristas, desalojando famílias inteiras. O tempo, acreditam os israelenses, acabará produzindo alguma novidade. Até lá, é seguir com a vida. Se a situação está longe do ideal, ela é ainda pior para os inimigos.

De fato, do lado palestino, o futuro parece ainda mais sombrio. Arafat morreu sem entregar um Estado e seu sucessor, Mahmoud Abbas, mais conhecido como Abu Mazen, é menos do que uma figura decorativa. A tal da unidade árabe só funciona quando é para produzir moções de repúdio a Israel e nada além disso. Na verdade, desde que não fique muito explícito, as lideranças árabes fazem o que podem para sabotar umas às outras. Vale lembrar que o Egito (até anteontem) participava gostosamente do bloqueio a Gaza. O maior inimigo interno do presidente Hosni Mubarak, afinal, é a Irmandade Muçulmana, que é a versão egípcia do Hamas.

Como se não bastasse, os palestinos vivem ainda uma espécie de guerra civil de atrito. Depois que os israelenses finalmente deixaram Gaza em 2007, os radicais do Hamas puseram a liderança local do Fatah (o partido laico fundado por Arafat e Abu Mazen) para correr do território. Desde então, os dois grupos travam batalhas (muitas vezes com tiros) pela preferência dos palestinos. Até que um finalmente submeta o outro (o que não está no horizonte visível) não se deve esperar nenhuma grande reviravolta.

A estratégia do Hamas nesse meio tempo tem sido a de utilizar contra seus inimigos judeus a mais efetiva das armas que tem à sua disposição: alguns foguetes (em 2010 já foram cerca de 300 Qassam, dos quais apenas 50 caíram em território israelense) e muita propaganda. Os mais de 40 anos de ocupação estão pesando contra Israel. Respondendo às provocações, tanto as reais como as imaginadas, os israelenses, de tempos em tempos, acabam cometendo um erro grave que resulta em muitas mortes de civis. O caso da flotilha é apenas o exemplo mais recente. Daí, invariavelmente, segue-se uma onda de condenações internacionais. A ONU se reúne, coloca um pouco de pressão, mas nada mais dramático é aprovado, porque os EUA, aliados quase incondicionais de Israel, têm direito de veto no Conselho de Segurança. E assim as coisas esfriam até que venha a próxima crise.

Embora ambos os lados estejam contando que o tempo acabará atuando a seu favor, é possível que estejam errados.

Israel já perdeu, por exemplo, as razões morais que chegou a ter no início do conflito, seis décadas atrás. Por uma dessas exuberâncias que só a neurociência explica, nós gostamos de torcer pelo lado mais fraco. A historinha do pastorzinho David derrotando o guerreiro gigante Golias é uma daquelas narrativas fundadoras da humanidade.

A metáfora funcionou bem para os judeus até meados dos anos 70. Com efeito, nas guerras de 1948, 1967 e --até certo ponto-- a de 1973, Israel era um pequeno país que confrontou --e venceu-- uma coalizão de inimigos bem mais fortes que pretendia varrer do mapa o Estado judeu. A partir de então, quando Israel já detinha indiscutível superioridade militar, a equação começou a inverter-se. Em 1982, veio a invasão do Líbano e os massacres de Sabra e Chatila, perpetrados por falangistas libaneses, que, com a conivência de tropas israelenses, assassinaram algo entre entre 800 e 3.000 refugiados palestinos. Nos anos 90, os papéis de David e Golias já haviam sido definitivamente trocados. Durante a primeira "intifada" (rebelião) eram os meninos palestinos que, munidos apenas de pedras, tentavam opor-se a soldados israelenses fortemente armados. A metáfora ganhou vida --e com sinais invertidos.

Também pesa contra os israelenses a chamada bomba demográfica. A melhor forma de evitar que Israel, com taxas de crescimento populacional cadentes, se veja cercado por um tsunami de palestinos miseráveis é levar desenvolvimento a essa população, o que exige a criação de um Estado palestino decente. Escola para a mulherada é a melhor pílula anticoncepcional no mercado.

No longo prazo, o tempo tende mesmo a atuar do lado dos palestinos. O problema é que, entre hoje e o longo prazo, há duas ou três gerações que serão sacrificadas. Eu pelo menos tenho dúvidas de que seja moralmente defensável pôr a perder o futuro de tanta gente em nome de um ideal de justiça tão vago quanto discutível.

Assim, se israelenses e palestinos desejam mesmo resolver essa situação para passar a viver normalmente, precisarão, antes de mais nada, renunciar à lógica míope de ações e retaliações que vem imperando até aqui. Os israelenses terão de abandonar a ideia de que podem seguir ignorando os palestinos. Como certa vez proclamou Yitzhak Rabin, a paz só se celebra com um inimigo.

Mas é aos palestinos que cabe o passo talvez mais difícil. Eles precisam desistir da ideia de que ações "de mártires", interpretadas como terroristas pelos israelenses, resolverão esse conflito. Os líderes do Hamas, para os quais esse gênero de confronto se tornou um meio de vida, evidentemente resistirão a mudanças. Essa é, hoje, a grande encrenca.

Numa análise sincera, ambas as partes têm todas as razões do mundo para odiar-se e querer eliminar a outra. Mas, sob uma perspectiva realista, nem os árabes conseguirão lançar os judeus ao mar, nem os israelenses empurrarão os palestinos para a Jordânia. Seria melhor para todos, portanto, que aprendessem a conviver em paz.

Feita essa escolha, o caminho é quase simples. Em 2000, os dois lados estiveram perto de um acordo final, o que serve como prova de princípio de que um entendimento é possível com base na partilha da ONU de 1947, algumas concessões amargas para os dois lados e muito dinheiro.

Encerro esta coluna observando um efeito colateral inesperado. Uma vez que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomou partido nessa história (talvez com mais veemência do que a boa diplomacia recomendaria), suspeito que o conflito no Oriente Médio se converterá num tema de campanha por aqui. Com a lógica do Fla-Flu dominando o jogo, lulistas tomarão as dores dos palestinos, enquanto a oposição se perfilará ao lado dos israelenses. É uma pena. É justamente esse cálculo tribal levado às últimas consequências que vem impedindo a paz entre israelenses e palestinos.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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