Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 

joão pereira coutinho

 

20/08/2012 - 07h00

Os dias de Londres

Cheguei a Londres no penúltimo dia da Olimpíada. Duas horas depois, senti uma vontade imediata de regressar para Lisboa. Impossível circular pelas ruas com as hordas que invadiram a cidade para assistirem aos jogos emocionantes de badminton.

Se precisasse de uma razão substancial para abominar a Olimpíada, aqui estaria ela: os Jogos arruinaram a vida civilizada da mais civilizada cidade europeia.

Mas não é preciso invocar razões numéricas quando existem as políticas: na primeira metade do século 20, e mesmo durante a Guerra Fria, eu seria capaz de entender a necessidade da febre nacionalista em montar estes circos. Uma espécie de competição fálica entre países onde o desporto, parafraseando Clausewitz, era apenas a continuação da guerra por outros meios. Mas hoje, na era do globalismo? Quando a interdependência e a fluidez cultural entre nações é absoluta?

A Olimpíada não passam de um anacronismo político. É como ressuscitar um dinossauro da idade jurássica e soltá-lo nas ruas de uma cidade do século 21.

*

A Olimpíada já tiveram momentos de infâmia. A Berlim nazista de 1936 foi um deles. A Moscovo comunista de 1980 foi outro. E Pequim, em 2008, seguiu o mesmo cardápio.

Mas é difícil suplantar Munique, 1972, quando 11 atletas israelenses foram sequestrados e mortos por terroristas palestinos.

Agora, 40 anos depois dos massacres, alguns familiares dos atletas mortos pediram ao Comité Olímpico que reservasse um momento de silêncio na cerimónia de abertura para lembrar as vítimas.

Os organizadores recusaram. Não quiseram misturar desporto com política, apesar de, como lembra Jonathan Tobin para a revista "Commentary", terem feito uma homenagem (política) aos 52 mortos dos atentados terroristas de Londres, em 2005, na mesma cerimónia.

Como escreve Jonathan Tobin, parece que há sempre critérios diferentes quando há judeus envolvidos. "O sangue dos judeus é mais barato", diz ele. Diz bem.

*

Curiosa discussão em Inglaterra: devem os grandes supermercados abrir aos domingos sem restrições de horário? Durante os Jogos (Olímpicos e Paralímpicos), o governo de David Cameron abriu uma excepção e disse que sim. E depois dos Jogos, como será?

Depois, o mesmo governo quer continuar a dizer que sim. A polémica está instalada.

A esquerda protesta e diz que o gesto "liberalizador" do premiê britânico é uma ameaça aos direitos dos trabalhadores, sobretudo das pequenas lojas de varejo (que hoje podem abrir ao domingo sem restrições).

Mas a direita tradicionalista também não está confortável com a hipótese: o domingo deve ser visto como o dia (sagrado) do descanso e da família, não da febre consumista.

Entendo a discussão. Mas, dessa vez, estou com Downing Street. E sempre me pareceu um grotesco ato de paternalismo político atribuir ao Estado o papel de "baby-sitter": comandando as horas a que os trabalhadores podem abrir ou fechar os seus negócios --e as horas a que nós, crianças consumidoras, podemos fazer as nossas compras.

Se o Estado já cobra impostos sobre o lucro alheio, a única coisa decente a esperar é que ele cale a boca sobre os horários do suor alheio.

*

Não é fácil matar um personagem que definiu a nossa carreira. Semanas atrás, pensei sobre o assunto ao ver Hugh Laurie, o famoso "Dr. House", no palco do Coliseu de Lisboa, a tocar piano e a cantar "blues". Laurie disparou piadas; dançou; foi de uma gentileza extrema com o público. Tradução: "Esqueçam o Dr. House. Não sou coxo, não sou misantropo, nem sequer tenho sotaque americano." (Laurie é inglês).

Com David Suchet é a mesma coisa: durante décadas, Suchet foi Poirot na série televisiva homónima. Hoje, quando falamos do detective belga que Agatha Christie inventou, é David Suchet quem nos assalta a memória: o bigodinho arrebitado nas pontas; os olhos pequenos e negros; o corpo de pinguim, em perfeita forma oval. David Suchet fez com Poirot o que Jeremy Brett conseguiu também com Sherlock Holmes.

Mas reduzir Suchet a Poirot é quase criminoso. Com respeitável carreira nos palcos, sobretudo no repertório de Shakespeare, Suchet é um dos grandes atores ingleses vivos - e a peça "Longa Viagem Para a Noite" comprova-o.

Se vierem a Londres, passem pelo Apollo Theatre e contemplem a composição de David Suchet como James Tyrone na referida peça de Eugene O'Neill. Uma mistura de ressentimento, sentimentalismo e tirania despejada sobre a mulher e os filhos com violência inaudita. Um naufrágio familiar onde todos se agridem --e afogam.

Nos inícios da década de 1970, o poeta Philip Larkin inaugurou o seu "This be the verse" com um "They fuck you up, your mum and dad". Dizem as más línguas que foi esse verso que lhe custou o título de "Sir".

Pena. Alguém deveria convidar o Palácio de Buckingham para esta matiné de Eugene O'Neill.

*

Leio no "Daily Telegraph" (que, aqui entre nós, está uma sombra pálida do que foi no passado) que cresce a tensão entre médicos do sistema nacional de saúde inglês e alguns pais de crianças com doenças terminais. Os primeiros querem ter a palavra final --e científica-- em casos de desesperança absoluta, desligando as máquinas quando a terapêutica é dolorosa e inútil.

Os segundos, em alguns casos, recusam jogar a toalha - e, em linguagem de novela, esperam por um milagre, muitas vezes movidos por crenças religiosas. Como decidir estas situações de impasse?

Respondo: sem entrar em simplificações grosseiras. Desligar as máquinas quando a esperança de recuperação é mínima pode significar, muitas vezes, matar um ser humano à fome e à sede (uma forma de eutanásia passiva, que nenhuma pessoa pode contemplar com o estômago intacto).

Por outro lado, persistir em suportes vitais quando o corpo já não passa de um cadáver pode também significar um gesto de crueldade e desrespeito pela essencial dignidade de qualquer ser humano.

Em matérias de vida ou morte, cada caso apresenta uma complexidade única que não autoriza respostas definitivas e absolutas. Fanáticos só atrapalham.

*

Regresso à Olimpíada. Melhor: elas regressam comigo no voo para Lisboa.

Leio no jornal português "Público" que o Instituto Dinamarquês de Estudos Desportivos não aconselha obras faraónicas em competições desportivas.

O referido instituto analisou competições várias em 20 países (Olimpíadas, copas de futebol, jogos pan-americanos, asiáticos, pan-africanos etc.) e a sentença é demolidora: na esmagadora maioria dos casos, o investimento em mega-estruturas (estádios, pavilhões desportivos etc.) foi ruinoso. E ruinoso porque a megalomania de alguns países foi maior do que a racionalidade e a preocupação com a sustentabilidade futura dessas mega-estruturas.

Portugal é um caso de estudo: em 2004, o país organizou a Eurocopa. Gastou dois bilhões de euros. Faliu entretanto e alguns dos estádios recém-construídos apodrecem alegremente ao sol. A Grécia, que recebeu os Jogos Olímpicos no mesmo ano em Atenas, seguiu pelo mesmo caminho. O caminho do buraco.

Moral da história? Construir monstruosidades para duas ou três semanas de farra significa pagar uma fatura que dura eternidades. O melhor, conclui o instituto, é ter equipamentos versáteis, que podem ser reduzidos ou mesmo desmontados depois da festa terminar.

O Brasil que tome nota.

joão pereira coutinho

João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro 'Avenida Paulista' (Record). Escreve às terças na versão impressa e a cada duas semanas, às segundas, no site.

 

As Últimas que Você não Leu

  1.  

Publicidade

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página